EXPERIÊNCIA DE LEITURA: Bárbara no Mercado (Leiro, 2017)

17.03.2024

Com Bárbara no Mercado (Leiro, 2017), a autora Lúcia Tavares Leiro, que também é professora de literatura brasileira, fez sua estreia na ficção infanto-juvenil em parceria com o artista Junior Pakapym, que ilustrou a capa do livro com componentes que aparecerão direta ou indiretamente na narrativa. Os principais elementos que constituem a ilustração são: a fachada do mercado de Santa Bárbara, a divindade afro-brasileira e, em primeiro plano, uma jovem usando ojá branco[1] e vestido vermelho, cor predominante na capa e na contracapa do livro. Diferente da maioria das obras literárias desse gênero, o livro não apresenta ilustrações ao longo da história, privilegiando a escrita e a interpretação de acordo com as perspectivas e experiências do leitor. Bárbara no Mercado é uma história que cativa do começo ao fim porque provoca reflexões sobre temas atuais, tais como a ancestralidade, a cultura afro-brasileira, empoderamento feminino e o lugar do leitor crítico no mundo. Além dos aspectos temáticos, a autora nos apresenta elementos narrativos ficcionalmente consistentes, já que ajudam a formar uma realidade, um momento, um lugar em que personagens se encontram em razão de uma festividade que os une. 

            A escolha da terceira pessoa na narrativa não provoca um distanciamento como poderia sugerir, ao contrário, mostra um narrador cúmplice, empático aos comportamentos e sentimentos das personagens. O narrador-observador, além de proporcionar uma visão panorâmica do que está acontecendo no texto, participa da trama com tanta intensidade e respeito que acaba convidando o leitor a mergulhar na jornada de autodescoberta e autorreflexão das personagens.

            O cenário apresentado no livro refere-se ao Mercado de Santa Bárbara, localizado na Baixa dos Sapateiros. É um lugar que homenageia a Santa Católica Bárbara que, no sincretismo religioso, é relacionada à divindade afro-brasileira Iansã. Com sua bela fachada vermelha e, em seu interior, a escultura da Santa, o mercado é um espaço frequentado por diversos indivíduos e religiões. É um centro comercial que, ao que sugere, é protegido por Santa Bárbara/Iansã. Mesmo que a narrativa ficcional aconteça somente nesse cenário, é possível sentir, por assim dizer, as riquezas de cada canto da cidade de Salvador, visualmente e culturalmente interligadas. É uma história que convida o leitor a conhecer os rituais cotidianos da cidade e, com isso, observar a forma de falar, de se expressar dos soteropolitanos. Ademais, incorpora na ficção patrimônios materiais e imateriais da cultura afro-brasileira. 

            A referência temporal tem como foco o dia 4 de dezembro, oficialmente conhecido pelas igrejas ortodoxas, católicas, anglicanas e as religiões de matrizes afro-brasileiras, como o Dia de Santa Bárbara. Uma data muito importante, que está relacionada ao nome da personagem protagonista da história. Com o seu vestido vermelho de renda bordado e o seu belíssimo turbante branco, sua evolução na narrativa é marcada pela exposição de lembranças e questionamentos. Bárbara é uma Ebomi, Omorixá Oyá do Ilê Axé[2], por isso se sentia muito conectada com as divindades africanas. Tem uma aura tão poderosa que instiga a curiosidade das pessoas que estão ao seu redor, fazendo com que sintam vontade de se reconectarem com quem eram e quem desejam se tornar. O seu jeito de ser é fruto de ensinamentos construídos através da educação, da música, da poesia, da conversa cotidiana e da cultura de seus antepassados. Tudo que carregava consigo é sua força vital. É apresentada como uma mulher muito comunicativa e cheia de esperanças, encantada pelo uso do turbante e pelo seu povo. Na história, caminha pelo Mercado, sentindo-se confiante, pois visitava o local há anos. Por meio de cada dança de roda, comida e contação de história, de cada grupo reunido, eram transmitidos saberes de seu pertencimento. Uma personagem que possui um peso enorme para a obra, porque inspira, zela pelo próximo. Foi muito bem desenvolvida pela autora. 

        Outra figura de destaque é Luna, uma aluna - registrada ludicamente como “aLuna” - do curso de Letras. Uma personagem repleta de coragem, curiosidade e altruísmo. Após enfrentar muitos desafios durante o seu amadurecimento, se descobriu como uma mulher preta na Universidade, após uma aula sobre ancestralidade e gênero. Descobriu-se no processo de autoaceitação e sentiu-se finalmente percebida. Ao decidir mergulhar nas suas raízes afro-brasileiras, Luna adentrou o Mercado de Santa Bárbara pela primeira vez com muita determinação, sendo acolhida por todos, principalmente por Bárbara. Do ponto de vista pedagógico, movendo o meu olhar para o âmbito educacional, o livro está em consonância com a Lei 10639/03, que determina que o ensino da “história e cultura afro-brasileira” deve estar presente nos movimentos curriculantes dos ensinos fundamental e médio. Bárbara e Luna, inclusive, discutem sobre a intolerância e o não cumprimento dessa regulação. Essa ênfase é um grande ponto positivo da escrita da autora, visto que, é um assunto que ainda persiste na sociedade. A exclusão ou omissão do ensino dessa cultura em um ambiente de formação como as escolas afeta a vida de muitas pessoas. 

            A variedade das reflexões sobre o mundo, enunciados por cada parte da obra literária, possui discussões cruciais a respeito de nossos ancestrais e o empoderamento feminino. Contribuições de outras personagens da narrativa como Maria, Seu Justino, Janete, Jorge, Alan e Helena, são fundamentais para o fortalecimento das relações e preservação do ambiente acolhedor. Helena, uma mulher muito guerreira, apesar de entrar na história somente no final da narração, destacou a importância da união desta comunidade. Estava sofrendo ameaças de seu ex-marido há tanto tempo que tinha medo de denunciar e piorar a situação. E, ao ser encorajada por Luna e Bárbara, decidiu procurar assistência psicológica e social. 

            A Bahia, especialmente a cidade de Salvador, é considerada o tesouro africano do outro lado do Atlântico; por ser um lugar marcado pela cultura, ancestralidade e harmonia do seu povo. O livro é uma grande contribuição para a ficção infanto-juvenil, principalmente para a literatura afro-brasileira baiana. É uma narrativa, citando Lúcia Leiro, carregada de força, vibração e existência. Valoriza a diversidade de saberes e vivências socioculturais, buscando compreender e recriar mundos. Esse tipo de representatividade é crucial para pessoas de todas as idades, principalmente jovens e crianças que estão na fase de construção e desenvolvimento de sua identidade. Bárbara no Mercado é um livro recomendado para leitores apaixonados pela sua própria existência, que buscam se reconectar com quem sempre foram.

 

 

 

[1] É uma tira embainhada de mais ou menos dois metros de comprimento por trinta centímetros de largura, feitas de tecido morim ou cretone sempre branco que é a cor de Oxalá. É usada em volta da cabeça.

[2] Ebomi ou ebomim (em iorubá significa "Meu Mais Velho", é um adepto do candomblé que já cumpriu o período de iniciação (iaô) na feitura de santo, já tendo feito a obrigação de sete anos odu ejé. Essa denominação é dada tanto às pessoas que receberam o cargo de oiê, tornando-se uma ialorixá ou babalorixá que irá abrir um novo Ilê Axé, como as que não receberam esse cargo e continuarão na casa onde foram iniciados ou em outro Ilê Axé, sem ser ialorixá ou babalorixá.