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Salvador, v.5, n.2 p.192-213, mai/ago. 2020
A matemática diante da possibilidade do ensino remoto: uma discussão curricular
A MATEMÁTICA DIANTE DA
POSSIBILIDADE DO ENSINO
REMOTO: uma discussão curricular
SILVIA ELIANE DE OLIVEIRA BASSO
Instituto Federal do Paraná (IFPR). Mestre em Educação (UEM). Doutoranda em Educação,
(UEM). Especialista em História do Mundo Contemporâneo (UNIPAR). Graduada em
Pedagogia (UEM). Graduada em História (UNIPAR, 1993). Professora de História e
História da Educação no IFPR - Campus Umuarama/PR. ORCID: 0000-0002-2015-2437.
E-mail: silviabasso_2005@hotmail.com
NETÚLIO ALARCON FIORATTI
Instituto Federal do Paraná (IFPR). Engenheiro Civil (UNESP). Mestre (UNESP). Professor
no Instituto Federal do Paraná (IFPR) - Campus de Umuarama-PR - e Coordenador do
Curso Técnico em Edicações Integrado ao Ensino Médio. ORCID: 0000-0001-8713-165X.
E-mail: netulio.oratti@ifpr.edu.br
MARIA LUISA FURLAN COSTA
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutora em Educação (Unesp/Araraquara). Mestre
em Educação (UEM). Graduada em História (UEM). Professora Adjunta do Departamento
de Fundamentos e Práticas da Educação (DFE/UEM) e do Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPE/UEM). Líder do Grupo de Pesquisa Educação a Distância e as Tecnologias
Educacionais/CNPQ. ORCID: 0000-0002-7838-0459. E-mail: luisafurlancosta@gmail.com
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Silvia Eliane de Oliveira Basso, Netúlio Alarcon Fioratti e Maria Luisa Furlan Costa
A MATEMÁTICA DIANTE DA POSSIBILIDADE DO ENSINO REMOTO:
uma discussão curricular
Este trabalho tem por objetivo colaborar nas discussões curriculares para o ensino de matemática
evocando as teorias críticas e pós-modernas como forma de questionamento das tradições de conteúdo
e metodologias. Considera-se nesta análise a atualidade da pandemia mundial da COVID-19, doença
infecciosa provocada por vírus, e os poucos ou inexistentes debates para a construção da Base Nacional
Comum Curricular e a Reforma do Ensino Médio, que no momento colocam em xeque o êxito das
propostas diante da fragilidade dos sistemas educacionais públicos, no que concerne às ferramentas e
conhecimentos para aulas e ensino remoto. Para tanto, parte-se das problematizações de currículo que
sempre existiram e neste momento tornam-se cada vez mais necessárias e importantes, chegam-se às
discussões sobre o ensino de matemática como conteúdo cultural e como possível ferramenta para o
desenvolvimento da capacidade de crítica social de quem a estuda e a ensina, ambos por meio de estudos
publicados. Assim, aludindo a discussões que hibridizam teorias críticas e pós-modernas, a matemática
sai da esfera de conteúdo hegemônico, permitindo-se reconstrução para abordagem dos mais diferentes
temas, sem que perca espaço para suas prescrições especas da ciência de orientação. É a matemática
posta no campo das incertezas, para permitir-lhe ampliar a compreensão das imeras situações em que
tratamento de dados e modelagens possam estar à serviço de justiça ou injustiça social. Apresenta-se, na
sequência, relato de experiência com um exemplo de metodologia de ensino de conteúdo de matemática
por meios digitais, como forma de ilustrar possibilidades, avaliação de potencialidades e fornecimento de
subsídios para a discussão. Por m, são consideradas na experiência registrada, as potencialidades e as
adversidades ligadas ao ensino de matemática de forma remota e corrobora-se a necessidade do debate
em torno do currículo que inclua não só pesquisadores, mas principalmente professores e estudantes, num
ensino de matemática que envolva sua natureza, fundamentos, signicados e consequências no cotidiano.
Palavras-chave: Ensino de Matemática. Currículo. Pandemia. Ensino Remoto.
THE MATHEMATICS IN FRONT TO THE POSSIBILITY OF REMOTE TEACHING:
a curricular discussion
This work aims to collaborate in the curricular discussions to the mathematics teaching evoking the
critical and postmodern theories as a way to question the contents and methodologies. Its is considered
the topicality of the world pandemic of COVID-19, infectious disease provoked by a vírus, and the few
or nonexistents debates to the construction of the Common Curricular Nacional Base and the Reform of
the Hight School, which in this momnt put in check the success of the proposals in face of the fragility of
the public educational system regarding to the tools and knowledge for the classes and remote teaching.
Therefore, we start from the curriculum problems that have always existed and at this moment become
increasingly necessary and important, we come to discussions about mathematics teaching as cultural
content and as a possible tool for the development of the social criticism capacity of those who study
and teach it, both through studies already published. Thus, alluding to discussions that hybridize critical
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A matemática diante da possibilidade do ensino remoto: uma discussão curricular
and postmodern theories, mathematics leaves the eld of hegemonic content, allowing reconstruction
to approach the most diverse subjects, without losing room for its specic prescriptions of the guidance
science. It is the mathematics put in the eld of uncertainties, to allow broaden understanding of the
countless situations in which data processing and modeling may be at the service of justice or social
injustice. Hereafter, it is shown an experience report with an example of a methodology for teaching
mathematical content by digital media, as a way of portray possibilities, evaluating potentialities and
providing subsidies for the discussion. Finally, the potentialities and adversities associated with teaching
mathematics remotely are considered in the recorded experience and suports the need for debate around
the curriculum that includes not only researchers, but mainly teachers and students, in a mathematics
teaching that involves its nature, fundamentals, meanings and consequences in daily life.
Keywords: Math Teaching. Curriculum. Pandemic. Remote Teaching.
LA MATEMÁTICA DELANTE DE LA POSIBILIDAD DE LA ENSEÑANZA REMOTA:
una discusión curricular
Este trabajo tiene el objetivo de colaborar en las discusiones curriculares para la enseñanza de matemática
evocando las teorías críticas y posmodernas en forma de cuestionamento de las tradiciones y metedologías.
Se toma en cuenta la actualidad de la pandemía mundial de la COVID-19, enfermidad infecciosa
causada por vírus y a los pocos o inexistentes debates para la construcción de la Base Nacional Comun
Curricular y la Reforma de la Escuela Secundaria, que en el actual momento pone en jaque el éxito de las
propuestas delante de la fragilidad de los sistemas públicos educacionales con respeto a las herramientas
y conocimientos para clases y enseñanza remota. Para estos nes, se parte de las problematizaciones del
currículo que siempre existieron y en esto momento se han convertido como más necesarias e importantes,
se llega a las discusiones sobre la enseñanza de matemática como contenido cultural y como herramienta
posible para el desarrollo de la capacidad de crítica social de quién la estudia y la enseña, ambos por medios
de estudios ya publicados. Así, aludiendo a las discusiones que hibridizan teorias críticas y posmodernas,
la matemática sale de la esfera de contenido hegemónico, se permitiendo reconstrucción para enfoques
de los más diversos temas, sin la rdida de espacios para sus prescripciones especícas de la ciencia
de orientación. Es la matemática puesta en el campo de las inseguridades, para le permitir ampliar la
comprensión de las numerosas situaciones en que el tratamineto de datos y modelados puedan estar a
servicio de la justicia o injusticia social. Tras eso, se presenta un relato de experiencia con un ejemplo
de metodología de enseñanza de contenido de matemática por los medios digitales, de manera a ilustrar
posibilidades y suministros de subsidios para la discusión. Por último son consideradas, en el registro de
la experiencia, el potencial y las adversidades relativas a la enseñanza de matemática de forma remota
y se corrobora la necesidad del debate acerca del currículo que incorpore no sólo investigadores, sino
principalmente profesores y estudiantes, en una enseñanza de matemática que implique su naturaleza,
fundamentos, signicados y consecuencias en el cotidiano.
Palabras clave: Enseñanza de Matemática. Currículo. Pandemia. Enseñanza Remota.
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Silvia Eliane de Oliveira Basso, Netúlio Alarcon Fioratti e Maria Luisa Furlan Costa
A MATEMÁTICA DIANTE DA POSSIBILIDADE DO ENSINO
REMOTO: uma discussão curricular
Introdução
Tradicionalmente visto como um rol de disciplinas ou matérias escolares, dispostas em tem-
pos e espaços previstos em um planejamento, currículo tem sido naturalizado na escola como se
sempre estivesse estado lá daquela forma, sendo possível pensar em sua organização ou propor-lhe
modicações apenas quando políticas governamentais instituem essa necessidade.
Assim, o que se ensina em cada uma das disciplinas, e mesmo suas especicidades, pa-
recem não ser questionáveis mesmo para aqueles que cursaram uma licenciatura e teoricamente
deveriam ter sido formados para reetir, construir e organizar um currículo conjuntamente com
outros prossionais. Ao chegar a uma escola o novo professor (que pode ser também o professor
novo), recebe um planejamento, um guia didático, instruções sobre o funcionamento da instituição,
papeladas e prazos e, quando consciente, sensibilizada e com liberdade (de tempo e espaço) para
esse trabalho, a equipe pedagógica lhe ofertará uma formação, que será formação permanente na
sequência do trabalho.
Tais condições são as ideias que nem sempre se encontram nas escolas públicas de grande
parte do país, quiçá nas particulares, que o fazem com um compromisso de mais cumprir também
as imposições de um currículo cujo ciclo fecha-se no resultado de desempenho de exames nacio-
nais ou de ingresso à universidade, que as escolas rankeam, garantindo a satisfação dos clientes
e a chegada de novos.
Essa mesma pressão chega à escola pública que vai sendo (des)classicada em exames
ociais e rankeada nos índices de aprovação daquilo que deniu-se por especialistas como conteúdo
a ser ensinado, assim como, para que ensinar.
Neste artigo, objetiva-se problematizar o currículo em tempos de aulas remotas e distancia-
mento social que colocou escolas sob a pressão de estar “presente” na distância exigida por uma
pandemia mundial provocada pela doença infecciosa COVID-19, neste ano de 2020. Sempre em
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A matemática diante da possibilidade do ensino remoto: uma discussão curricular
destaque como medida de sucesso educacional, a disciplina de matemática é alvo de preocupações,
pois o que e como ensina, pode ser feito de forma remota?
Tentando responder a essas várias questões, parte-se das problematizações de currículo que
sempre existiram, cam emergentes neste momento, chega-se às discussões sobre o ensino de mate-
mática como conteúdo cultural, ambos por meio de estudos publicados, e apresenta-se, por meio
de relato de experiência, um exemplo de metodologia de ensino de conteúdo de matemática por
meios digitais como possibilidade de desenvolvimento de autonomia de aprendizagem ao estudante.
O Currículo em questão
Desnaturalizando o currículo, o que signica historicizá-lo, pode-se dizer que desde que a
escola em qualquer nível se organizou para ensinar, isto é planejou conteúdos, métodos, objetivos,
temos currículo. Pautados em valores desejáveis para a comunidade ou agrupamento que repre-
sentavam, especialistas estabeleceram o que ensinar, para que e como. No Brasil esses primeiros
especialistas foram os jesuítas e alguns conteúdos eram vistos como úteis para ampliar a memória
ou facilitar o raciocínio lógico. Isso não é um problema, é história, o problema é naturalizar isso
e continuar fazendo da mesma forma ad aeternum.
Em Saviani (2003) se encontra uma denição de currículo que não resume seu signicado,
mas oferece um ponto de partida para a reexão por trazer elementos que são plausíveis para
qualquer grupo:
O currículo diz respeito a seleção, seqüência e dosagem de conteúdos da cultura
a serem desenvolvidos em situações de ensino-aprendizagem. Compreende
conhecimentos, idéias, hábitos, valores, convicções, técnicas, recursos,
artefatos, procedimentos, símbolos etc... dispostos em conjuntos de matérias/
disciplinas escolares e respectivos programas, com indicações de atividades/
experiências para sua consolidação e avaliação. (SAVIANI, 2003, p.01).
Pautando-se no pesquisador espanhol Gimeno Sacristan, Saviani utilizará a compreensão de
currículo como processo envolvendo ações de entes dentro e fora da organização escolar. Assim
âmbitos de ações burocráticas (órgãos educacionais), mercadológicas (editoras de livros) e
pedagógicas (professores), com relativa autonomia em relações de dependência mas também de
incoerência, sendo, portanto, o currículo, objeto de políticas e táticas para mudá-lo.
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Em Teorias de Currículo Lopes e Macedo (2011), realizam trabalho sinóptico de abordagens
para a discussão sobre Currículo. Com sinóptico, no entanto, não se quer dizer reduzido, pois o
livro se apresenta como um compêndio de autores e teorias no tratamento do assunto. O currículo
é então, um campo em disputa, em que uma xação mínima de sentidos permite reetir para além
das tradições postas.
De acordo com as mesmas autoras a primeira referência ao termo currículo registra-se em
1633 na Universidade de Glasgow signicando curso inteiro seguido pelos estudantes, assim
“currículo dizia respeito a organizar a experiência escolar de sujeitos agrupados” (LOPES e MA-
CEDO, 2011, p.20).
Tendo sido abordado de inúmeras maneiras desde quando a escola tornou-se uma necessidade
na sociedade industrial, o currículo tornou-se nas últimas décadas alvo constante de discussão por
à ele vincularem-se conhecimento, cultura e organização social.
Em países cujas políticas de bem-estar social tão relevantes após a 2ª guerra mundial pas-
sam a ser questionadas e as vertentes econômicas do neoliberalismo vão pautar um discurso do
ecientismo, mérito individual e empreendedorismo, o currículo na escola passa por ressigni-
cações que serão questionadas por educadores como Michael Apple que é personagem, narrador
e também crítico da escola básica norte-americana a partir das décadas de 1970 e 1980. É neste
contexto histórico que faz o questionamento de a quem ou o que o currículo atende. Nesta forma
de estudar o currículo como campo em disputa, a pergunta mais signicativa para o autor não
é “qual conhecimento tem mais valor” e sim “de quem é o conhecimento que tem mais valor”.
(APPLE, 2006, p.21).
Pergunta instigante e que pode causar estranheza a quem não está familiarizado com este
tipo de discussão, mas que é absolutamente pertinente se considerarmos que não há neutralidade
em educação, como armava o pensador Paulo Freire (1921 – 1997) em inúmeros de seus textos,
em que educar é uma ato político (FREIRE, 2007). Armar a neutralidade pode ser na verdade
corroborar com o que está posto, mas foi posto ali por algum motivo. Recriar currículos em que
grande parcela da população e cultura estava fora da escola como se isso fosse bom é nas palavras
de Apple, uma “revolução que anda para trás”:
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A matemática diante da possibilidade do ensino remoto: uma discussão curricular
Tendemos a esquecer que as “revoluções podem andar para trás”. O que estamos
testemunhando na educação e em muitas outras instituições econômicas,
políticas e culturais é exatamente isso - uma política que quer mudar
radicalmente nossa sociedade para que ela espelhe um paraíso supostamente
existido um dia. Bem, esse “paraíso” foi a época em que alguns comentaristas
mais atentos chamaram de “moinho satânico” e de uma política de controle
cultural que de fato marginalizou as vidas , os sonhos e as experiências das
pessoas. (APPLE, 2006, p.12).
Referindo-se à crítica do sociólogo húngaro Karl Polanyi (1888-1964) às graves consequências
sociais que o processo de instrumentação industrial provocou na sociedade “triturando homens e
transformando-os em massa”, Apple incita a questionar discursos da escola boa de antigamente num
posicionamento em que a cultura está em posição central para a análise da sociedade e do currículo.
Fazendo o percurso histórico do Currículo como campo nos Estados Unidos, o autor ajuda
a pensar também a realidade em que nos encontramos. O autor salienta que as discussões sobre
currículo se intensicam nos EUA no seu crescente processo de industrialização do início do século
XX, ameaçando o modelo social pautado na classe média rural. A chegada de milhares de imigrantes
somada à população negra que vinha do sul do país, tanto quanto a nova elite de industriais, cria,
para este setor da sociedade norte-americana, o temor pela mudança no estilo de vida.
Sem conseguir conter a imigração, e portanto a cultura que lhe é inerente, os teorizadores do
currículo desviarão a discussão do campo das diferenças étnicas para o campo da ciência e da técnica.
A ciência defendendo a superioridade da nacionalidade americana (e não de qualquer americano),
quando por exemplo, pesquisas antropológicas alegavam que os negros tinham uma propensão a
formas de governos monárquicas e não democráticas e a tecnologia e técnica administrativa mostrava
a excelência da produtividade e progresso econômico. A essa categoria de pessoas dominantes da
técnica e da ciência cabia um tipo de currículo e ao restante da população outro.
Finney adotou uma visão de diferenciação um pouco diferente daquela dos
teóricos formativos da área. Defendia o que parecia ser um currículo comum
em que predominavam as disciplinas emergentes da ciência social, mas fez
uma distinção fundamental de como esses temas deveriam ser ensinados a
indivíduos de diferentes habilidades. Os de alta inteligência aprenderiam
sobre sua herança social por meio de um estudo das ciências sociais. Seria um
estudo que os ensinaria não apenas sua herança, mas as demandas sociais nela
implicadas. Aos indivíduos de inteligência inferior seriam ensinadas apenas as
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próprias ciências sociais, mas isso seria condicionado a responderem chavões
adequados que reetissem o conteúdos dessas disciplinas e as demandas sociais
nela contidas. (APPLE, 2006, p. 123).
Brasil, 2016, pós-impeachment de Dilma Roussef, o então Presidente Michel Temer lança por
meio de Medida Provisória - MP 746/2016 (BRASIL, 2016) uma reforma com mudanças drásticas
para o ensino médio brasileiro. O fato de lançar-se como medida provisória e tão imediatamente após
o impeachment já demonstra uma articulação prévia de grupos e parlamentares que desconsiderava
o caminho que vinha sendo traçado pela educação nacional desde a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional - LDB 9394/96 (BRASIL, 2017). Esta, não estabelecia princípios para
uma educação humanitária, como lançava os percursos para o Plano Nacional de Educação (PNE),
com ampla discussão e participação nacional dos mais diversos setores da sociedade.
Sem ser esse o objeto de discussão neste trabalho, a menção a este fato remete a análise
feita pela pesquisadora Monica Ribeiro da Silva (SILVA, 2019), coordenadora do Observatório
do Ensino Médio da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Movimento Nacional em Defesa
do Ensino Médio, quando arma que a medida provisória transformada em Lei 13.415/2017
(BRASIL, 2017), mesmo após amplo movimento de ocupações de escolas públicas em todo país
1
,
a Base nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL, 2019a) e reformulação das Diretrizes
Nacionais para o Ensino Médio - DCNEM / Resolução MEC nº 03/2018 (BRASIL, 2019b), como
três atos de um só golpe que desrespeitam o que vinha sendo delineado pelo PNE e Diretrizes Na-
cionais - DCNEM/2012, e impõe arbitrariamente uma formação reducionista, limitada e recortada
em itinerários formativos.
Um dos itinerários formativos é o de matemática e suas tecnologias, sendo também a disciplina
de matemática e de língua portuguesa as obrigatórias nos três anos do ensino médio, independente
do itinerário escolhido, que pode ser também: linguagens e suas tecnologias, ciências da natureza
e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e prossional.
Desde o ano 2000 a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
promove uma avaliação para estudantes de 15 anos de idade a todos os países membros. É o PISA
- Programa Internacional de Avaliação de Estudantes e as áreas avaliadas são leitura, matemática
1 O movimento de ocupações de escolas liderado por jovens articulados nas escolas ou pela União Brasi-
leira de Estudantes Secundaristas (UBES) registrou mais de mil escolas ocupadas em todo o país, na defe-
sa da ampla discussão e suspensão da reforma.
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A matemática diante da possibilidade do ensino remoto: uma discussão curricular
e ciências. Os resultados apontam que o Brasil permanece entre os 10 piores resultados em ma-
temática, na última avaliação em 2018, e mantiveram as médias de resultado entre os 20 últimos
para ciências e leitura (G1.GLOBO/EDUCACAO, 2019).
Todas essas discussões e números em avaliações são questões essenciais para a área de
currículo que no contexto atual tornam-se ainda mais intensas, pois como arma Apple (2006), o
currículo não está neutro ao contexto:
A educação está intimamente ligada à política da cultura. O currículo nunca é
apenas um conjunto neutro de conhecimentos, que de algum modo aparece nos
textos e nas salas de aulas de uma nação. Ele é sempre parte de uma tradição
seletiva, resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do
que seja conhecimento legítimo. É produto das tensões, conitos e concessões
culturais, políticas e econômicas que organizam ou desorganizam um povo.
(APPLE, 2006, p.59).
Assolados mundialmente pela enfermidade COVID-19, o contexto de pandemia de 2020
interrompeu a presencialidade das aulas por todo o globo. São milhões de estudantes em casa
nas mais diversas condições socioeconômicas, mas todos sob a mesma ameaça: a contaminação,
disseminação e ameaça à vida que o vírus provoca.
Num país com imensas desigualdades sociais como o Brasil, o cenário para a continuidade
do ensino e da aprendizagem de milhares de estudantes é dramático. Com as aulas presenciais
suspensas desde o mês de março de 2020, muitas Secretarias Estaduais e Municipais de Educação,
passaram a planejar e aplicar programas emergenciais de ensino remoto por meio de entrega de
materiais impressos, aulas gravadas, atendimentos online via plataformas digitais ou aplicativos
de celulares. Além das graves questões de falta de acesso de grande parte da população a esses
mecanismos de comunicação virtual e internet, ou pior, a ausência absoluta de políticas públicas
sanitárias em forma de falta de água encanada, passaram muitos docentes a questionar a possibi-
lidade de ensino e aprendizagem de uma disciplina como a matemática, de forma remota.
Enunciado o contexto atual e o mote das discussões curriculares, passa-se na próxima
seção à reexão das (im)possibilidades do ensino e a aprendizagem de conteúdos de matemática
de forma remota.
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Ensino remoto em tempos de pandemia: a matemática em foco
Básica para a vida cotidiana, para a aprovação em qualquer tipo de exame ou concurso, para
medir o nível de qualidade da escolarização de um país, a matemática é, ou parece ser, condição
sine qua non na construção de conhecimentos básicos para a vida em sociedade e, portanto, “in-
discutível” no currículo escolar, tanto que a BNCC (2017) tem nela um de seus itinerários e é uma
das disciplinas obrigatórias para todos os anos do ensino médio.
Realizando discussão para pensar o currículo em matemática, que deveria ser o caminho
para a construção de Diretrizes Nacionais em lugar da BNCC obrigatória, Silva (2013) apresenta
a tradição do currículo fordista de planejamento linear e conhecimento transmitido resultante da 2ª
Revolução Industrial (1850-1945), em dissonância com a necessidade de construir novos critérios
para a escolha e organização de conteúdos matemáticos para o ensino médio brasileiro.
Tecendo a problematização de currículo, Silva (2013) apresenta as abordagens críticas e
pós-modernas como coerentes com as discussões acadêmicas e, acrescenta-se, com os movimentos
estudantis, de questionar a nalidade do ensino médio e o papel da matemática nesse processo.
Os estudos sobre ensino de matemática e educação matemática, entre eles os de etnomate-
mática de D’Ambrósio (200--?)
2
, de ideias fundamentais da matemática de Machado (2014) e de
matemática crítica de Skovsmose (2001), compõem a série de pesquisas, ainda escassas na área da
educação matemática, que convidam os professores e os estudantes a encarar a matemática e seu
currículo, como meios através dos quais a crítica sobre a conformação social pode ser realizada.
A etnomatemática de D’Ambrósio (20--?) é um conceito que extrapola aquilo que está
no “etno” comumente utilizado até o momento em outras áreas. Etno era compreendido como
as particularidades pelas quais determinado grupo concebia uma área ou conhecimento, o que a
tornava “menor” em relação aos modelos clássicos ocidentais. Na abordagem de D’Ambrósio,
etnomatemática é a matemática no contexto dos grupos humanos, e assim, as de todos os povos e
tempos estão nela, não sendo correto “julgar” a matemática dos povos da Amazônia, por exemplo,
a partir da grega clássica (D’AMBRÓSIO, 20--?).
2 O texto utilizado neste trabalho está hospedado na página de um grupo de pesquisa de uma Universidade, não cons-
tando a data de sua publicação. Desta forma optou-se por inseri-lo por ser basilar, apresentando-o por meio da norma
Abnt /Nbr 6023/8.6.2, listada a referência ao nal deste trabalho.
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A matemática diante da possibilidade do ensino remoto: uma discussão curricular
Para Machado (2014) o grande problema no ensino de matemática (como de outras áre-
as) da sociedade contemporânea, é a fragmentação de conteúdos que faz com que estudantes
(principalmente no ensino médio) recebam centenas de “pontos” de matemática, acreditando-se
que ao nal tem-se o todo. Isso não acontece: a fragmentação dilui o interesse e os estudantes
saem com uma grande quantidade de pontos e sem as ideias fundamentais da matemática. Nas
revisões curriculares, discutem-se pontos e não as ideias fundamentais que sempre extrapolam
a organização em disciplinas.
Essas abordagens classicadas como críticas, são apresentadas ao lado das chamadas
pós-modernas por Silva (2013) numa proposta de hibridização teórica para pensar o currículo
de matemática. De acordo com o autor, as abordagens críticas tensionam o papel da educação
e do currículo trazendo para os conteúdos o questionamento de sua função na resolução dos
problemas sociais e a disputa de poder, procurando aproximar os estudos de um conteúdo cul-
tural, reconhecidamente hegemônico e direito de todos. Temos as pesquisas de Ole Skovsmose
do movimento da matemática crítica (SKOVSMOSE, 2001), com referência capaz de dar uma
dimensão reexiva à disciplina.
Nas abordagens pós-modernas a complexidade, o afastamento da visão binária de opostos:
possível / impossível ou certo / errado, cria milhões de possibilidade de abordagens e aprendi-
zagens numa disposição do conteúdo em rede, na perspectiva de ser sempre transformado, num
constante processo de signicação / ressignicação de conceitos, valores e atitudes. Um dos
autores citados nessa abordagem Doll Jr.(1997).
A hibridização proposta por Silva (2013) pauta-se na chamada práxis da incerteza dos pes-
quisadores norte-americanos David Stinson e Erika Bullock, que considera: “aspectos das ações
transformadoras da perspectiva crítica em harmonia com a incerteza e a complexidade da corrente
pós-moderna”. Assim o autor hibridiza o compromisso social da matemática, sem atestar-lhe
conteúdos hegemônicos, ao mesmo tempo em que por meio da constante reconstrução permite a
abordagem dos mais diferentes temas, defendendo simultaneamente espaço para as orientações
especícas da ciência de orientação (SILVA, 2013, p. 227).
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Sem pretender fazer de seus 8 Rs
3
uma prescrição para organização curricular, Silva apre-
senta tal abordagem para pensar a matemática nessa realidade intitulada de incertezas e colaborar
no debate educacional.
Os estudos sobre matemática crítica, especialmente aqueles apresentados por Skovsmose
(2001) em “Educação matemática crítica: a questão da democracia”, alertam que os modelos ma-
temáticos são aquilo que formatam o mundo e, portanto, são utilizados para tomadas de decisão
das intervenções humanas neste mundo. É muito corriqueira a utilização de uma linguagem ma-
temática nas relações de comércio, nas situações de produção de bens, nas prestações de serviço,
nas situações de cadastro propriedades imóveis e em muitas outras relações que são de natureza
social. São relações que existem basicamente devido à capacidade humana de criar e cultivar
socialização e relacionamentos de benefícios mútuos.
Apesar da linguagem matemática ser muito utilizada nas relações humanas de primeira ordem
não se limitam a elas, muito pelo contrário, em outras relações humanas mais complexas residem
as maiores intervenções e consequências também tratadas através da linguagem matemática, que
são as decisões políticas e as atitudes do mercado nanceiro.
As políticas públicas sempre são decididas com base em indicadores que são apresentados
em linguagem matemática: a matemática é exata, mas sua aplicação não é neutra, o que não pode
garantir que os dados apresentados são os únicos e os mais indicados a serem levados em conta
para cada situação. É possível que os dados possam ser tratados sob outras perspectivas, que a
matemática, que até então foi considerada anunciadora da verdade, possa ter sido também um
instrumento em que prevaleça a vontade de alguns.
É neste contexto, que o currículo que trata do processo educativo que envolve elementos de
natureza matemática, precisa ser visto como elemento que pode ser utilizado para que se mantenha
uma visão distorcida das realidades ou que esta visão seja contestada. Desta forma, aquilo que
é ensinado em matemática, o currículo da matemática, pode ser visto como uma ferramenta de
governo dos outros (BAMPI, 2000).
3 Terminologia usada e desenvolvida pelo autor a partir dos estudos de Doll Jr., para a abordagem híbri-
da do conteúdo em Matemática: riqueza, reexão, realidade, responsabilidade, recursão, relações, rigor e
ressignicação.
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A matemática diante da possibilidade do ensino remoto: uma discussão curricular
Quando se ensinam ferramentas matemáticas para tratamento de dados e modelagem do
mundo natural, ensina-se ao estudante que ele pode realizar intervenções e aumentar sua com-
preensão do mundo natural ou mesmo do mundo alterado pelo homem, mas pouco se ensina que
modelagens e tratamentos parecidos são os mesmos utilizados por aqueles que governam os seres
e os entes que compõe a sociedade. Esta pequena visão é proporcionadora de grandes mudanças
na maneira com que se observa a matemática e pode ser ampliada quando se direciona o olhar para
o sem número de injustiças sociais que são construídas e mantidas diariamente.
Esta práxis do ensino da matemática, esta forma de manifestar o currículo de matemática
no processo pedagógico, pode existir em correlação com aquilo que é entendido como currículo
praticado (currículo em ação), mas pode não car restrita apenas a esta compreensão de currículo.
Pode-se expandir também aos currículos normativos, aos currículos dos planejamentos e a tantas
outras formas de compreender o currículo, seja em suas perspectivas estritamente acadêmicas como
em suas perspectivas mais diretamente tangentes à vida cotidiana da grande maioria dos cidadãos.
No universo da sala de aula, é comum percebermos estudantes denindo-se entre “de huma-
nas” ou “de exatas”. Parece que houve um esquecimento da história da evolução dos processos do
pensamento humano. Os grandes pensadores da antiguidade eram pensadores não exclusivamente
dos números, mas da matemática da realidade, ao mesmo tempo que eram pensadores da condição
humana. Uma educação matemática que retome os conceitos matemáticos como inerentes à condição
humana e necessários para a construção de processos cognitivos consistentes é tão imprescindível
que percebe-se isso exposto claramente no texto da BNCC:
Um dos desaos para a aprendizagem da Matemática no Ensino Médio é
exatamente proporcionar aos estudantes a visão de que ela não é um conjunto
de regras e técnicas, mas faz parte de nossa cultura e de nossa história. [...]
Assim, as habilidades previstas para o Ensino Médio são fundamentais para que
o letramento matemático dos estudantes se torne ainda mais denso e eciente,
tendo em vista que eles irão aprofundar e ampliar as habilidades propostas para
o Ensino Fundamental e terão mais ferramentas para compreender a realidade
e propor as ações de intervenção especicadas para essa etapa. (BNCC, 2017,
p. 522).
Muito atual é a avaliação da progressão do número de infectados em uma epidemia bem
como o comportamento típico da curva de contágio, evolução do número de óbitos, efetividade
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de tratamentos e muitos outros dados que inundam os meios de comunicação em um período no
qual se materializa uma pandemia. Porém, tão importante quanto perceber que a matemática está
no desenho daquilo que acontece é tão importante quanto encontrar as funções ou determinar o
polinômio interpolador que parece descrever determinado fenômeno, é perceber que a matemá-
tica per se é neutra, mas nas relações humanas, nas situações inegavelmente reais que governam
realidades e produzem muitas alegrias e sofrimentos, nada é inócuo.
A matemática está também nas análises das variáveis e indicadores para tomadas de decisões
de políticas públicas em saúde, no uxograma do funcionamento de um processo de compras
públicas e na maneira com que recursos escassos são distribuídos, privilegiando um ou outro,
contribuindo para a manutenção de uma realidade ou a construção de outra. Quando os indivíduos
são educados para governarem a si de forma autônoma, libertadora e crítica, a matemática tem
papel fundamental neste processo educativo.
Possibilidades do ensino remoto da matemática
Educação à distância, ensino a distância, aulas remotas, atividades não presenciais… inú-
meros termos emergem nesse momento em que, sem possibilidades de retorno das comunidades
escolares, que representavam diariamente aglomerações de centenas de pessoas: estudantes,
docentes, técnicos e demais servidores, aconteçam. Instituições particulares, primeiramente, e
as públicas na sequência, instituíram ou ampliaram no caso de cursos EaD, o uso de ferramentas
para re(estabelecer) uma “regularidade” de relação docente / discente; instituição / comunidade
e a possibilidade de ensino / aprendizagem.
Sem ser objeto especíco deste trabalho, é oportuno observar que as instituições particu-
lares saem quase de forma imediata na oferta desse serviço, algumas com as condições e a
experiência, mas todas elas pressionadas pelo perigo do não pagamento do serviço suspenso - é
a expressão da educação transformada em mercadoria.
Na esteira desse procedimento, as instituições públicas são chamadas à manifestar-se e então
haverá respostas das mais variadas e nenhuma delas alcançando a totalidade dos estudantes, pois
na escola pública estão os estudantes que expressam condições socioeconômicas das mais graves.
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A matemática diante da possibilidade do ensino remoto: uma discussão curricular
Partindo dessas considerações, faz-se uma breve apresentação das denições das termi-
nologias para o ensino não-presencial e apresenta-se uma experiência de atividade para ensino
remoto de conteúdo da matemática, experimentado no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus
Umuarama, com uma turma da matéria de Topograa do curso Técnico em Edicações Integrado
ao Ensino Médio, no período de 13/04/2020 a 30/04/2020.
Respeitando as pesquisas e experiências na área e objetivando dar clareza à descrição da
atividade, recorre-se aos pesquisadores da área que subsidiam o entendimento do assunto, tanto
quanto a normativa do IFPR para as atividades nesse contexto. Assim têm-se:
a) Educação a Distância - modalidade conhecida pela sigla EaD, como tipo de congura-
ção para o ensino-aprendizagem, formas de organização administrativa, técnica, logística e
pedagógica da educação (MILL, 2018, p.198-199);
b) Ensino remoto ou aula remota: modalidade de ensino ou aula que pressupõe distanciamento
geográco de professores e estudantes, com transposição do ensino presencial físico para os
meios digitais, com foco na informação e suas formas de transmissão, predominantemente
de maneira síncrona (MOREIRA; SCHLEMMER, 2020, p. 8-9);
c) Ensino a Distância: ensino caracterizado pela separação física e, por vezes temporal, entre
alunos e professores, vinculado a um meio de comunicação, desde a escrita à utilização de
microcomputadores e Web (MOREIRA; SCHLEMMER, 2020, p. 10-13);
d) Atividades pedagógicas não presenciais (APNP): ações de caráter formativo relacionadas
aos projetos pedagógicos dos cursos ofertados pelo IFPR desenvolvidas externamente aos
ambientes educativos da instituição e sem a interação direta entre educadores e educandos.
(IFPR, 2020, p.02).
Desse modo, como atividade pedagógica não presencial, aproximando-se do que do que
Moreira e Schlemmer (2020) caracterizam como ensino remoto, uma possibilidade de ensino a
distância, passa-se a descrição da atividade.
A matemática é um contexto de ensino onde existe grande diculdade de ruptura de seus
métodos tradicionais de trabalho. Os professores e professoras de matemática construíram-se
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através desses métodos tradicionais, tanto durante a educação básica, quando em sua formação
docente. Para muitas pessoas a educação matemática tendo como objetivo o ensino de elementos
que fazem parte da natureza matemática só é alcançada pelas vias tradicionais, onde se ensinam
as regras, os métodos, os algoritmos, as sequências lógicas de forma objetiva e quase positivista.
Quando se pretende auxiliar o estudante na apropriação de conceitos de natureza matemá-
tica, quando o objetivo é caminhar para uma alfabetização matemática, os elementos estritamente
tradicionais podem e precisam ser exibilizados através da inclusão de elementos do cotidiano do
estudante e que permitam a evolução de sua capacidade crítica.
Exemplos sem muitas conexões com a realidade cotidiana certamente tem seu valor, espe-
cialmente quando se trata do que Silva (2013, p. 214) chamou de “valorização do conhecimento
matemático historicamente construído, da Matemática pela Matemática”, porém não se pode deixar
de ter em mente que todo um processo educativo em matemática, baseado na Matemática pela
Matemática, tende mais à distanciar os educandos que acolhê-los.
Objetivando, então, manter vivo o processo de alfabetização matemática em tempos de
distanciamento social devido à pandemia, é que a referida atividade foi elaborada. Pretendeu-
se utilizar ferramentas cotidianas para maior parte dos estudantes, então, através da plataforma
Google Sala de Aula, onde todos os estudantes já estavam inseridos, foi disponibilizado um texto
curto introdutório e um documento de texto (Google Docs) previamente preenchido, em que os
estudantes deveriam seguir um roteiro e preencher as informações em locais previamente sinali-
zados, informações estas que seriam obtidas através do Google Maps diretamente ou através da
interpretação de alguns dados.
Por se tratar da matéria de Topograa, atentando-se que um curso integrado trabalha con-
ceitos de todas as disciplinas de forma integrada, foi escolhido o tópico da ementa que trata de
“posicionamento orbital e geoprocessamento”. O objetivo da atividade era fazer uma revisão
integrada de conceitos trabalhados na geograa, como cartograa, e plano cartesiano e pares
ordenados na matemática direcionados para a compreensão inicial do funcionamento do Sistema
de Posicionamento Global (Global Positioning System - GPS).
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Inicialmente foi apresentada aos estudantes uma imagem que remete a uma cena do episódio
nal de temporada, de um seriado popular entre o público adolescente e adulto. Nesta imagem
a personagem deveria resolver um enigma e assim descobrir uma coordenada geográca, que
descobriu-se ser onde seu par romântico estava esperando. Nesta escolha há a intenção de trazer a
atenção do estudante para a atividade por tratar-se de uma produção de entretenimento amplamente
divulgada em mídias especícas e em redes sociais, além de trazer a questão do enigma, que pode
não ter cado claro para quem assistiu e traz curiosidade para quem não assistiu.
Figura 1: Imagem com enigma mostrando coordenadas geográcas.
Fonte: “La casa de papel”, Netix, temporada 2, episódio 9, 40’15”
4
De posse desta coordenada geográca, o roteiro da atividade solicitava ao estudante ini-
cialmente a conversão das coordenadas, que são ângulos no formato sexagesimal, para o formato
decimal. A operação de transformação do ângulo foi ensinada em uma aula síncrona simples que
foi disponibilizada também assíncrona para ser vista novamente, se o estudante considerasse ne-
cessário. Este é um tópico quase que exclusivo de matemática, sem tanta conexão com cotidiano.
Neste ponto do roteiro de atividade o docente também abordou a importância das diversas formas
4 Disponível em: https://www.netix.com/watch/80205395?trackId=14277281&tctx=0%2C8%2C88899b-
52-ee07-45e5-bca1-d57abba73ad2-106555931%2C%2C%2C
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de expressar uma grandeza e ainda a precisão dos algarismos decimais signicativos, que para
serem compatíveis com a precisão de segundos do formato sexagesimal, demandam serem em
grande quantidade.
Após, é feito um paralelo entre o GPS e o plano cartesiano, sendo o cruzamento da linha
do equador com o meridiano de Greenwhich o ponto de origem do plano cartesiano, isto é, as co-
ordenadas geográcas, em formato sexagesimal acrescida das letras indicadoras dos hemisférios
são convertidas em coordenadas cartesianas, em formato decimal com valores positivos indicando
norte nas latitudes e leste nas longitudes, e valores negativos indicando sul nas latitudes e oeste
nas longitudes. A análise do plano cartesiano em paralelo com o sistema de posicionamento global
contextualiza em muito o formato cartesiano com a realidade do estudante, ampliando a possibi-
lidade de compressão da utilidade dos conceitos trabalhados.
Para concluir o início da atividade o estudante deveria, utilizando o Google Maps inserir as
coordenadas em formato sexagesimal e em formato decimal, encontrar o local indicado na ima-
gem do seriado, fazer print da tela e colar no roteiro de atividades. Como atividade de xação o
estudante deveria encontrar diversos outros locais, com coordenadas apresentadas no roteiro com
os dois formatos mencionados.
Paralelamente a estas atividades, também foi necessário trabalhar a utilização de separado-
res de decimais, que nos Estados Unidos, onde o GPS foi criado e ainda é mantido, o separador
de milhar é a vírgula e o separador de decimal é o ponto, situação contrária à utilizada no Brasil.
Para conclusão geral, os estudantes foram convidados a procurar um lugar no mundo que
gostariam de apresentar na atividade, tirar um print da tela e escrever suas coordenadas geográcas
no formato sexagesimal e decimal, novamente como exercício de xação dos conceitos estudados.
A avaliação do aprendizado foi feita através da resposta das diversas fases da atividade e também
das respostas dos estudantes nas devolutivas que o professor realizou.
Para trabalhar este assunto em aula presencial da referida matéria, o docente utilizaria um
conjunto de 2 horas-aula, foi disponibilizado mais tempo ao estudante por questões de diculdades
de acesso, ambientação na plataforma e desconhecimento do docente sobre a situação emocional
dos estudantes dado o, então recente, início da pandemia.
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Apesar de inicialmente parecerem poucos os conteúdos da matemática no objetivo da ativi-
dade, convém salientar que a atividade contempla assunto de três disciplinas diferentes, associado
ao fato de que se pretende manter o estudante atento à conceitos de natureza matemática além de
apenas ensinar conteúdo matemático. Isto posto, é conveniente observar todos os outros conceitos
matemáticos e elementos de natureza matemática que são trabalhados no decorrer da atividade,
mesmo não estando explícitos no objetivo inicial.
Ao término da atividade, após realizada a avaliação de aprendizagem e do cumprimento do
objetivo, pôde-se realizar um balanço das potencialidades e fragilidades da tentativa de ensinar
conteúdos de natureza matemática remotamente.
Um primeiro aspecto que demanda atenção do docente é a questão da escrita matemática. É
notável que esta atividade não privilegiou o desenvolvimento da comunicação escrita de conceitos
de natureza matemática, isto é, da construção da linguagem matemática escrita do estudante e aí
se materializa um dos maiores desaos do ensino remoto da Matemática.
Quanto aos conceitos objetivos da matemática, da geograa e da topograa que se pretendeu
trabalhar, é possível observar através das respostas fornecidas à atividade que houve sim a com-
preensão, mas a observação direta do professor sobre a forma do estudante organizar inicialmente
o tratamento do problema assim como a maneira com que o estudante desenvolve o tratamento do
problema para chegar a uma solução, para responder a questão proposta, avaliações indispensáveis
no processo educativo da matemática, não puderam ser realizada de forma satisfatória através
desta atividade.
Considerações nais
A discussão sobre o currículo é uma das mais árduas e necessárias no contexto educacional,
não por acaso é nela de maneira interventiva que a reforma do ensino médio tem sido conduzida
no Brasil, nos últimos anos, por meio de medida provisória, documento de base sem ampla par-
ticipação das “bases” e legislação na contramão das discussões nacionais dos pesquisadores em
educação e educadores de maneira geral.
O contexto de pandemia mundial, estendido para além de um tempo inicial de expectativa,
está sendo substituído por uma necessidade de agir de alguma forma e tem instigado (ou deveria)
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o debate sobre o currículo com suas implicações de que e para quem estão estes ou aqueles con-
teúdos e como são abordados.
A disciplina de matemática fazendo parte de todos os repertórios de avaliação internacionais
e nacionais, com suas pontuais nalidades, depara-se com formas tradicionais, quase “sacralizadas”
de ensinar, e a necessidade de encaminhar atividades de forma remota, fazendo emergir as teorias
críticas e pós-modernas de concepção curricular na matemática.
A BNCC do Ensino Médio, até o momento texto não operacionalizado, pode ser questionada
quando a atividade aqui apresentada como possibilidade de ensino de forma remota, demonstra a
importância da integração, que embora preconizada pela BNCC pode apresentar-se como irreali-
zável diante de itinerários recortados e sem a presença de outras áreas cientícas para estudantes
que ainda estão realizando a alfabetização cientíca.
Assim, diante da ingerência de setores e atores empresariais na educação; diante de políticas
públicas que propõem práticas fadadas a não realizar a qualidade e aproveitamento que teoricamente
defendem; diante de um cenário em que o planejamento para trabalho na escola desconsidera a
participação de seus trabalhadores, cada professor e cada estudante possa se perguntar: Quem sou
eu diante da reforma curricular e da necessidade do ensino remoto? Esse, considera-se, já é um
importante ponto de partida, para participar das tensões do currículo.
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sexta-feira, 23 de setembro de 2016.
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