Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
| Plurais Revista Multidisciplinar, v.6, n.1, p. 92-115, jan./abr. 2021
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DOI: https://doi.org/10.29378/plurais.2447-9373.2021.v6.n1.10230
VOZES DO CÁRCERE: A PRÁTICA
LITERÁRIA E A REDUÇÃO DE PENA PELA
LEITURA NA PERSPECTIVA DE PESSOAS
PRIVADAS DE LIBERDADE
Eli Narciso da Silva Torres
1
Grupo de Pesquisa Focus - Universidade Estadual de Campinas
http://orcid.org/0000-0002-8295-9367
Gesilane de Oliveira Maciel José
2
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul
http://orcid.org/0000-0001-5868-8459
Miguel Barthiman dos Santos
3
Observatório da Violência e Sistema Prisional (UFMS)
http://orcid.org/0000-0002-4969-2031
RESUMO:
Este artigo procura demonstrar a função das práticas literárias no âmbito da remição de pena pela leitura
a partir de perspectivas, conhecimentos e experiências de pessoas privadas de liberdade. Para isso, utili-
zou-se da técnica da entrevista narrativa para compreender a vivência literária, vinculada aos contextos
individuais e coletivos dos participantes. Inicialmente o estudo aborda as políticas educacionais e as
iniciativas de fomento à leitura e escrita nas prisões, como mecanismo de inclusão social, de desenvol-
vimento educacional e intelectual. Em seguida, aponta as ações literárias desenvolvidas em diferentes
estados da federação, com dados atualizados sobre os projetos e instituições envolvidas em programas
de remição pela leitura no Brasil. Por m, apresenta as narrativas de participantes do Projeto “Remição
pela Leitura - Educação para a Liberdade”, que compartilham suas percepções sobre as experiências
vivenciadas durante as práticas de leitura e escrita, além de dialogar sobre como os sujeitos envolvidos
percebem o mundo e a inuência do projeto literário em seu cotidiano no interior da prisão. Os resulta-
dos encontrados apontam que a ação literária contribui, signicativamente, para (a) ampliar os códigos
linguísticos do participante, (b) auxilia para o aprimoramento dos processos cognitivos; (c) de sociabi-
lidade e, por sua vez, (d) na modulação da maneira como o indivíduo vivencia as interações cotidianas
com o grupo em condição de aprisionamento. O suporte teórico/literário favorece ainda, para novas
reexões sobre a própria trajetória, e a respeito da vida no período posterior à prisão.
Palavras-chave: Leitura e escrita na prisão. Remição pela leitura. Pessoas privadas de liberdade.
Educação em prisões. Narrativas de pessoas presas.
1 Doutora em Educação (UNICAMP). Socióloga. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Educação,
Instituições e Desigualdade - FOCUS (UNICAMP). Coordenadora do Observatório da Violência e Sistema
Prisional - Linha de Pesquisa: Sociedade, educação e sistema punitivo - CNPq. E-mail: eli.educ@hotmail.com
2 Doutora em Educação (UNESP/Presidente Prudente). Docente EBTT (IFMS), Integra o Observatório da
Violência e Sistema Prisional e o Grupo de Pesquisa Formação de Professores, Políticas Públicas e Espaço Escolar
(GPFOPE). E-mail: gesilane.jose@ifms.edu.br
3 Especialista em Gestão em Segurança Pública com ênfase em Sistema Prisional pela Faculdade
Tecnológica Paulista. Graduado em Letras. Integra o Observatório da Violência e Sistema Prisional (UFMS).
E-mail: mbarthimann@gmail.com
Vozes do cárcere: a prática literária e a redução de pena pela leitura na perspectiva de pessoas privadas de liberdade
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ABSTRACT:
VOICES FROM PRISON: LITERARY PRACTICE AND REDUCED SEN-
TENCE FOR READING FROM THE PERSPECTIVE OF PEOPLE DE-
PRIVED OF THEIR LIBERTY
This article seeks to demonstrate the role of literary practices in the context of the remission of sentences
for reading from the perspectives, knowledge and experiences of people deprived of their liberty. For
this, it was used the technique of narrative interview to understand the literary experience, linked to the
individual and collective contexts of the participants. Initially, the study addresses educational policies
and initiatives to promote reading and writing in prisons, as a mechanism for social inclusion, educatio-
nal and intellectual development. Then, it points out the literary actions developed in different states of
the federation, with updated data on the projects and institutions involved in reading remission programs
in Brazil. Finally, it presents the narratives of participants in the “Remission for Reading - Education
for Freedom” project, who share their perceptions about the experiences they have experienced during
reading and writing practices, in addition to discussing how the subjects involved perceive the world and
inuence of the literary project in his daily life inside the prison. The results found point out that literary
action contributes signicantly to (a) expanding the participant’s linguistic codes, (b) helps to improve
cognitive processes; (c) sociability and, in turn, (d) modulating the way the individual experiences daily
interactions with the group in a condition of imprisonment. The theoretical / literary support also favors,
for new reections on his own trajectory, and on life in the period after the arrest.
Keywords: Reading and writing in prison. Remission by reading. People deprived of their liberty. Edu-
cation in prisons. Narratives of prisoners.
RESUMEN:
VOCES DESDE LA CÁRCEL: PRÁCTICA LITERARIA Y REDUCCIÓN
DE PENAS PARA LA LECTURA DESDE LA PERSPECTIVA DE LAS
PERSONAS PRIVADAS DE LIBERTAD
Este artículo busca demostrar el papel de las prácticas literarias en el contexto de la remisión de la pena
por la lectura desde las perspectivas, conocimientos y vivencias de las personas privadas de libertad.
Para ello, se utilizó la técnica de la entrevista narrativa para comprender la experiencia literaria, vincu-
lada a los contextos individuales y colectivos de los participantes. Inicialmente, el estudio aborda políti-
cas e iniciativas educativas para promover la lectura y la escritura en las cárceles, como mecanismo de
inclusión social, desarrollo educativo e intelectual. Luego, señala las acciones literarias desarrolladas en
diferentes estados de la federación, con datos actualizados sobre los proyectos e instituciones involucra-
das en programas de remisión lectora en Brasil. Finalmente, presenta las narrativas de los participantes
en el proyecto “Remisión por la lectura - Educación para la libertad”, quienes comparten sus percepcio-
nes sobre las experiencias que han vivido durante las prácticas de lectura y escritura, además de hablar
sobre cómo los sujetos involucrados perciben el mundo. y la inuencia del proyecto literario en su vida
diaria dentro de la prisión. Los resultados encontrados señalan que la acción literaria contribuye signi-
cativamente a (a) expandir los códigos lingüísticos del participante, (b) ayuda a mejorar los procesos
cognitivos; (c) sociabilidad y, a su vez, (d) modular la forma en que el individuo experimenta las inte-
racciones diarias con el grupo en condición de encarcelamiento. El soporte teórico / literario también
favorece, para nuevas reexiones sobre su propia trayectoria, y sobre la vida en el período posterior a
la detención.
Palabras clave: Leer y escribir en prisión. Remisión por lectura. Personas privadas de libertad. Educa-
ción en las cárceles. Narrativas de prisioneros.
Eli Narciso da Silva Torres, Gesilane de Oliveira Maciel José e Miguel Barthiman dos Santos
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Introdução
As ações educacionais sejam elas, formais ou informais e desenvolvidas em espaços de
privação de liberdade – práticas educativas na prisão – acontecem de forma distinta de outros
ambientes escolares, tendo em vista a hostilidade inerente ao “sistema penitenciário” e a neces-
sidade do Estado em instituir medidas disciplinares e/ou de controle institucional.
Se por um lado, a realidade das unidades prisionais se congura, em regra, como um
polo de conitos e violências presentes no histórico de rebeliões e massacres no país; por outro,
na tentativa da contenção do avanço dos domínios de grupos criminosos, parte dos gestores
penitenciários compreendem a implantação de procedimentos disciplinares como elementares à
assimilação de normas, rotinas e a manutenção da segurança institucional diante da superlotação
carcerária. Tudo isso, diante da complexidade penitenciária do país que reúne a terceira maior
população carcerária do mundo, contando com mais de 748.000 pessoas privadas de liberdade
(DEPEN, 2020a).
Nesse cenário de elevado encarceramento e tensões cotidianas, a Lei de Execução Penal
(LEP/1984) visa efetivar as determinações de sentença ou decisão jurídica e possibilitar con-
dições para a integração social da pessoa privada de liberdade. Para isso, a legislação prevê a
oferta de assistências penitenciárias com o objetivo de prevenir o crime e orientar o retorno à
convivência em sociedade. Como assistências destacam-se a saúde, amparo jurídico, material,
social, religioso e educacional (BRASIL, 1984).
Nas últimas décadas, o Brasil reuniu esforços de intelectuais, militantes e políticos
prossionais que culminou num processo gradativo de institucionalização da política nacional
de educação para pessoas presas, mediante produção de normativos legais (TORRES, 2017;
TORRES, 2019).
Entre os normativos destacam-se, a Resolução 3, de 2019 do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária (CNPCP); a Resolução CNE/CEB 02, de 19 de maio de
2010, que indicou as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação nos estabelecimentos pe-
nais; o Decreto nº 7.626/2011, de 24 de novembro de 2011, que instituiu o Plano Estratégico de
Educação no âmbito do Sistema Prisional; e, a Lei 12.433/2011, de 29 de junho de 2011, que
instituiu a remição pelo estudo durante a execução da pena.
Cabe destacar que a Lei 12.433/2011, alterou a LEP/84, e garantiu à pessoa presa o direito
de reduzir parte da pena pela participação e frequência escolar. Assim, ao participar de atividades
educacionais, tanto em aspectos formais, como outros projetos educativos não formais (sujeitos
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a avaliação do ministério público e poder judiciário) e prossionalizantes, o privado de liberdade
poderá “pagar” dias de pena de prisão pela via educacional.
Por m, foi publicada a Nota Técnica n.º 1/2020, que apresenta “[...] orientação nacional
para ns da institucionalização e padronização das atividades de remição de pena pela leitura
e resenhas de livros no sistema prisional brasileiro” (DEPEN, 2020c, p.310), as quais serão
abordadas detalhadamente na próxima seção.
As práticas literárias desenvolvidas mediante programas de “remição pela leitura” são
fundamentais aos processos de ensino, aprendizagem e trocas sociais, conforme demonstrado
pela Nota Técnica n.º 1/2020 (DEPEN, 2020b).
Nessa direção, diversos projetos de leitura e escrita (práticas literárias) têm sido im-
plantados nos estados brasileiros, recorrendo às parcerias viabilizadas entre as Universidades,
Secretarias Estaduais de Educação, Institutos Federais e órgãos de execução penal.
Com base na experiência Projeto de Leitura – Educação para a Liberdade, instituída em
penitenciárias do estado de Mato Grosso do Sul (MS), este artigo procura entender a função
das práticas de leitura e escrita no cotidiano e sob a ótica de pessoas privadas de liberdade. Para
compreender a função dessas práticas no cárcere buscou-se organizar o estudo a partir de dois
eixos: O primeiro trata do (i) alcance das ações literárias desenvolvidas em diferentes unidades
prisionais a partir da remição de pena pela leitura e das iniciativas de fomento a prática literária
nas prisões. O segundo, (ii) descreve alguns relatos de experiências vivenciadas pelos participan-
tes e o impacto da atividade literária nas vivências, no cotidiano do cárcere e, consecutivamente
para as expectativas de viver em grupo e em sociedade.
Para isso, utilizou-se do dispositivo de entrevistas narrativas, procurando reconhecer o
processo de escuta desses indivíduos que vivem em situação de reclusão e silenciamento insti-
tucional em decorrência das normas do sistema penitenciário. A narrativa possibilita agregar as
experiências e percepções das pessoas privadas de liberdade que participam assiduamente do
Projeto desenvolvido no presídio Instituto Penal de Campo Grande (IPCG), MS.
A entrevista narrativa refere-se a um dispositivo de coleta de dados que procura superar
o tipo de entrevista baseado em pergunta-resposta. Ela emprega um tipo especíco de comuni-
cação cotidiana, por meio do contar e escutar história, além de abrir possibilidades de sentido
e compreensão, frente a partilha de experiências de vida e de percursos biográcos (JOVCHE-
LOVITCH, BAUER, 2003; SOUZA, 2014; CLANDININ, CONNELLY, 2015).
Para a apreciação dos dados, adotou-se a análise compreensiva-interpretativa, na direção
de apreender regularidades e irregularidades tanto do aspecto individual e particular do narrador,
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quanto sobre o conjunto de narrativas orais e escritas, conforme delineado por Souza (2014) e
ainda por Clandinin e Connelly (2015). Enquanto, o recorte teórico ancora-se nas reexões de
Freire (1981, 1979, 1987), além dos diálogos empreendidos pelos pesquisadores que se dedi-
cam aos estudos sobre a política, a oferta e/ou práticas da educação em espaços de privação de
liberdade, entre eles, Onofre (2011, 2015), De Maeyer (2013), Ireland (2011), Torres (2019),
José (2019).
A legislação, a educação e remição de pena nas prisões
As políticas em educação em prisões estão vinculadas ao conceito de cultura e aos
princípios de emancipação, cidadania e autonomia, e conguram-se como um mecanismo de
promoção, proteção e reparação dos direitos humanos, além de oferecer novas possibilidades
de acesso à vida, quando em condição de liberdade.
A Constituição Federal de 1988 assegura à educação a legitimidade do direito social,
visando o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania e sua
qualicação para o trabalho, com vistas a garantir a equalização de oportunidades educacionais
com padrão mínimo de qualidade de ensino (BRASIL, 1988).
Para dialogar a respeito da perspectiva da educação para todos, ocorreram diversos
encontros internacionais, entre eles: a Conferência de Jomtien (UNESCO, 1998); a Declaração
de Hamburgo: agenda para o futuro (UNESCO, 1999); e a Educação para todos: o compromisso
de Dakar (UNESCO; CONSED; AÇÃO EDUCATIVA, 2001). A partir desses encontros foram
promulgados documentos que reforçam a necessidade de garantir o direito universal à educação
para todos; a urgência em superar as disparidades educacionais enfrentadas pelos grupos
excluídos; a necessidade de consolidar a inclusão progressiva de temas de educação para a vida
nas modalidades formal e não-formal; e a defesa que o acesso à educação de qualidade deva
atender às populações em situação de vulnerabilidade.
Dentre as medidas que contribuíram para a institucionalização da garantia de direitos à
educação de pessoas presas no Brasil, o projeto Educando para a Liberdade (UNESCO, 2006),
constitui-se como referência anterior às legislações e, principalmente como marco fundamental
na construção de uma política pública integrada e cooperativa direcionada à população privada
de liberdade. Nesse documento, estabelece-se o compromisso de que sejam fortalecidas as po-
líticas de incentivo ao livro e à leitura nas unidades prisionais, com implantação de bibliotecas
e com programas que atendam não somente aos alunos matriculados, mas a todos os integrantes
da comunidade prisional (JOSÉ, 2019).
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No ano de 2009, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)
promulgou a Resolução de nº 03 de 11/03/2009, em que associa a oferta da educação às ações
complementares de fomento à leitura e a inauguração ou recuperação de bibliotecas para atender
à população privada de liberdade (CNPCP, 2009).
Enquanto no ano de 2010, o CNE emitiu Diretrizes Nacionais de Educação para a oferta
de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos
penais, no qual destacam, entre outras orientações, que sejam instituídas políticas de estímulo à
leitura e à escrita nas unidades prisionais (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2010).
Com o advento da remição pelo estudo, em 2011, possibilitou que o condenado que
cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto possa remir parte do tempo de execução da
pena. Essa remição pode ocorrer da seguinte forma: 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas
de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive prossionalizante, ou
superior, ou ainda de requalicação prossional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias. Em
caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena
(desde que certicado por órgão competente), serão acrescidos 1/3 na remição (BRASIL, 2011).
O Decreto 7.626/2011 promulgou o Plano Estratégico de Educação, no âmbito do Sis-
tema Prisional (PEESP), que visava expandir e aprimorar a oferta educacional (educação básica,
prossionalizante e superior) no sistema penitenciário a partir de articulações interministeriais
e com os estados.
Como desdobramento das ações educacionais, novos entendimentos jurídicos e analogias
passaram a abarcar a remição de “leitores resenhistas” de livros. Cabe destacar que se trata de
ações vinculadas às atividades educativas articuladas à administração estadual, municipal de
educação ou da área prisional, e agregadas ao preceito do sistema de justiça criminal, que englo-
ba as administrações penitenciárias, e revertidas para ns de remição de pena dos custodiados
(TORRES, 2019; DEPEN, 2020b).
No ano de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Recomendação
44, de 26/11/2013 orienta que sejam consideradas atividades de caráter complementar para a
remição pelo estudo no contexto da educação nas prisões, entre elas, a remição pela leitura.
Nessa concepção, o leitor privado de liberdade passa a ter 4 (quatro) dias reduzidos da pena a
cada resenha produzida e considerada apta, observando o limite de 48 (quarenta e oito) dias por
ano (CNJ, 2013).
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Práticas de leitura em espaços prisionais
O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mapeou 26 estados e o Distrito Federal
executando projetos de remição pela leitura e 1 (um) projeto no Sistema Penitenciário Federal
(SPF), conforme demonstra a Nota Técnica nº 1/2020/DEPEN:
Quadro 1: Normativos estaduais que regulamentam a remição pela leitura por unidade federativa e Sistema.
4
ESTADO
INÍCIO/
ANO
NOME DO PROJETO
QUANTIDADES
DE PRESOS
PARTICIPANTES
Sistema
Penitenciário
Federal
2009 Remição pela Leitura
4
-
Acre 2015 Leitura Livre 46
Alagoas 2017 Projeto Lêberdade 44
Amazonas 2015 Programa de Remição da Pena através da Leitura 1.734
Amapá NC NC 30
Bahia 2014 Há diversos projetos 567
Ceará 2016 Livro Aberto 4.586
Distrito Federal 2018 Ler Liberta 700
Espírito Santo 2017
Ler Liberta; Remição pela Leitura; Virando a
Página e a Hora de Ler e Voar
239
Goiás 2014 Programa de Remição pela Leitura 150
Maranhão 2017 Projeto Leitura Interativa 1.215
Mato Grosso 2018 Remição pela Leitura 301
Mato Grosso do
Sul
2014
Remição pela Leitura - Educação para a
Liberdade
258
Minas Gerais 2014 Projeto de Remição pela Leitura 1.573
Pará 2012 A leitura que Liberta 225
Paraíba 2016 Projeto de Remição pela Leitura 399
Paraná 2012 Remição pela Leitura 3.343
Pernambuco 2017 Remição de Pena pela Leitura 6.846
Piauí 2015 Leitura Livre 137
Rio de Janeiro 2016 Remição de Pena pela Leitura 807
Rio Grande do
Norte
2017 Projeto Remição pela Leitura NC
Rio Grande do
Sul
2019 Remição pela Leitura NC
Rondônia 2014 Remição pela Leitura 1.577
Roraima 2017 Leitura pela Libertação 252
Santa Catarina 2016 Projeto Despertar pela Leitura 2.006
São Paulo 2009
Clubes de Leituras; Remição pela Leitura: Dos
Direitos Educativos ao Acesso à Justiça; e outros
25.108
Sergipe 2019 Remição pela Leitura 90
Tocantins 2014 Remição pela Leitura NC
Fonte: DEPEN (2020), com adaptações dos autores.
4 3.694 resenhas foram elaboradas no ano de 2019.
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Os dados do mapeamento demonstram que, no ano de 2019, foram atendidos 7% da po-
pulação prisional do país (DEPEN, 2020b). Trata-se de um quantitativo relevante, especialmente
ao considerar o percentual, médio, de 10% de pessoas atendidas na educação formal (DEPEN,
2020a).
A maior participação nos projetos literários, para ns de remição, ocorre nos estados
em que as Secretarias Estaduais de Educação assumem as ações vinculadas a atividades com-
plementares, no âmbito da educação formal. Em outros estados, as atividades de remição pela
leitura ocorrem por meio de parcerias estabelecidas entre as universidades, igrejas, professores
voluntários, Institutos Federais, dentre outras instituições e as Secretarias Estaduais de adminis-
tração penitenciária (DEPEN, 2020b).
Nesse sentido, o propósito de oferecer acesso ao letramento literário à pessoa privada
de liberdade, congura-se, sobretudo, como garantia de direitos ao reconhecê-la como via de
inclusão social e desenvolvimento educacional e intelectual, podendo ampliar o campo de co-
nhecimento sociocultural do indivíduo.
Soares (2009) compreende o letramento como resultado da ação de ensinar ou de aprender
a ler e escrever, ou seja, o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo
como consequência de ter-se apropriado da escrita. Sendo assim, o letramento pressupõe que
o indivíduo que se envolve em práticas de leitura e de escrita torna-se uma pessoa diferente
adquirindo uma outra forma de pensar.
Ainda na visão da autora, a pessoa letrada passa a ter uma outra condição social e cul-
tural. Não se trata propriamente de mudar de nível ou de classe social, cultural, mas de mudar
seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura, sua relação com os
outros, com o contexto e com os bens culturais (SOARES, 2009).
O ato de ler deve proporcionar ao educando tanto a leitura da palavra como a leitura
crítica do mundo. Nesse sentido, sua função assume um caráter diretivo, com atenção voltada
a partir da leitura de mundo pautada pelas condições históricas, políticas e sociais. Da mesma
forma, a leitura implica sempre em uma percepção crítica, interpretação e “reescrita” do lido
(FREIRE, 2001).
Considerando essa chave de análise, o processo de observação das entrevistas busca
compreender qual o impacto da atividade literária nas vivências, no cotidiano do cárcere e nas
expectativas de viver em sociedade, sob a ótica de pessoas privadas de liberdade.
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100
O Projeto Remição pela Leitura - educação para a liberdade
O Projeto Remição pela Leitura - Educação para a Liberdade é desenvolvido pelo Obser-
vatório da Violência e Sistema Prisional
5
, vinculado à Linha de Pesquisa Sociedade, Educação
e Sistema Punitivo
6
do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Cultura, Psicologia, Educação e
Trabalho (CPET) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
7
.
A partir dos estudos desenvolvidos pelo Observatório e do interesse pela temática vol-
tada à educação em espaços prisionais, foi criado o Projeto Remição pela Leitura - Educação
para a Liberdade e implementado nos municípios de Campo Grande e Corumbá, tanto em uni-
dades prisionais masculinas como femininas. Os projetos estão balizados pela Portaria 1/2018
da 1ª Vara de Execução Penal (VEP), que posteriormente foi atualizada pela portaria conjunta
001/2019 das VEP’s.
Conforme orientação da Portaria, a participação da pessoa privada de liberdade deve
ocorrer de forma voluntária, desde que tenha as competências de leitura e escrita mínimas ne-
cessárias para a execução das atividades. O prazo para leitura da obra literária é de 30 (trinta)
dias, apresentando, ao nal deste período e no prazo de 10 (dez) dias, resenha a respeito do
assunto (VEP, 2019).
Os encontros congregam de 20 a 25 pessoas e acontecem a cada quinze dias, por meio
de ocinas e rodas de leitura a partir de diferentes gêneros literários, orientações sobre escrita
(redação, ortograa e gramática) e diálogo e devolutiva sobre as resenhas produzidas.
A unidade prisional é a responsável pela inscrição dos participantes e organização da
lista de presença, bem como designar espaço para as ocinas, controlar o trânsito e acesso dos
participantes e comunicar aos ministrantes os motivos de ausência dos participantes, seja por
soltura, transferência de estabelecimento penal ou desistência voluntária de participação do
projeto (MORENO, FLANDOLI, SANTOS, 2020).
A comissão responsável pela avaliação do texto deve observar os aspectos relacionados
à compreensão e compatibilidade do texto com o livro para considerá-la como apta. Os critérios
de avaliação das resenhas, segundo entendimento das portarias, devem considerar a estética do
texto, limitação ao tema e dedignidade.
5 O Observatório busca aprofundamento teórico e epistemológico em temáticas que envolvam a exclusão
social, a criminalidade e sobre como vem se institucionalizando as políticas nacionais e internacionais para o
sistema penitenciário. Nesta direção, tem mapeado os índices e elevação de crimes contra jovens negros, as políti-
cas de execução penal, a gênese das políticas públicas, a oferta da educação em prisões e a remição de pena pela
via educacional no Brasil e em outros países da América Latina (JOSÉ, TORRES, FLANDOLI, 2017).
6 Coordenado pela pesquisadora Dra. Eli Narciso da Silva Torres.
7 Coordenado pela Profa. Dra. Beatriz Rosália Gomes Xavier Flandoli.
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O Juízo decidirá, posteriormente, sobre o aproveitamento do participante e a correspon-
dente remição. Nesse caso, a contagem do tempo para ns de remição será de 4 (quatro) dias de
pena para cada 30 (trinta) dias de leitura.
Para esse artigo, foi realizada a análise das ações literárias desenvolvidas no Instituto
Penal de Campo Grande (IPCG), entre o período demarcado pelos meses de julho de 2018 e
novembro de 2019
8
. O IPCG opera em segurança média, destinada aos presos do sexo masculino
que cumprem pena em regime fechado. Atualmente a unidade abriga 1.633 pessoas privadas de
liberdade (IPCG, 2020).
Para a execução do projeto, foram escolhidas obras que variam entre clássicas e con-
temporâneas. Alguns livros foram cedidos pela própria unidade, de outras penitenciárias ou de
doações do próprio Grupo de Pesquisa.
Desde a instituição, 118 integrantes já participaram do projeto, entretanto a rotatividade
(acesso e permanência) é elevada, visto que ocorrem desistências ao longo das ações. Os motivos
são variados, que se justicam pela diculdade no processo de leitura e escrita, ou por questões
administrativas ou judiciais, entre elas destacam-se, as transferências entre unidades prisionais,
a progressão de regime e o recolhimento disciplinar
9
. A Tabela 1, a seguir, demonstra os resul-
tados correspondentes aos 18 meses de execução do projeto.
Tabela 1: Resultados do Projeto Remição pela Leitura Educação para a Liberdade julho/18 a no-
vembro/19.
MÊS
TOTAL DE RESENHAS PRODUZIDAS
RESENHAS
APROVADAS
RESENHAS
REPROVADAS
Julho/18 16 11 5
Agosto/18 17 8 9
Setembro/18 17 10 7
Abril/19 19 13 6
Maio/19 15 14 1
Junho/19 12 12 0
Julho/19 18 15 3
Agosto/19 14 14 0
Setembro/19 10 10 0
Outubro/19 13 12 1
Novembro/19 08 5 3
TOTAL 159
124 35
78% 22%
Fonte: Elaboração dos autores.
8 Neste período, o projeto foi coordenado pela Profa. Dra. Gesilane de Oliveira Maciel José.
9 As celas disciplinares são conhecidas na linguagem dos internos como “a forte” e anunciam que lá é um
lugar que “o lho chora e não não vê”, em analogia ao isolamento total. Os presos são alojados ali quando sur-
preendidos portando entorpecentes ou celulares, ou ainda, aqueles que não têm convivência nas celas de origem”
(TORRES, 2011, p. 80). No período de recolhimento a pessoa presa deixa de frequentar a escola.
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No período foram escritas 159 resenhas, sendo 124 consideradas aptas e o equivalente a
78% de aprovação, e outras 35 resenhas consideradas não aptas, ou seja, 22% do índice global.
Cabe destacar que no período de outubro/18 a mar/19, não foram realizadas ocinas ou elabo-
ração de resenhas por precauções de segurança.
A constituição do caminho da leitura e escrita: percursos
metodológicos
Para identicar como os indivíduos percebem a contribuição do projeto literário, sele-
cionamos as narrativas de 9 (nove) integrantes, nomeados aqui como participantes.
Consideramos que a entrevista narrativa possibilita que o narrador conte sua história
(em sequência temporal ou em um continuum), procure explicar os fatos e dialogar com os
acontecimentos que constroem a vida individual e social, em contextos subjetivos e concretos,
conforme perspectiva delineada por Jovchelovitch e Bauer (2003); Souza (2014) e Clandinin e
Connelly (2015).
Tal dispositivo permite compreender a vivência literária, vinculada a contextos indi-
viduais e coletivos, com histórias vividas e contadas diretamente, “mas também as coisas não
ditas e não feitas, que moldam a estrutura da narrativa” (CLANDININ, CONNELLY, 2015, p.
104). Nessa dimensão, cada participante da pesquisa narrou sua trajetória de vida escolar e sua
experiência com a leitura.
Como critério de escolha, optamos pelos participantes mais assíduos e que produziram
maior número de resenhas. Entre eles, 2 (dois) participantes possuem o ensino fundamental
completo, 6 (seis) o ensino médio completo e 1 (um) possui o nível superior completo com curso
de pós-graduação lato sensu.
As entrevistas estão amparadas pelo Termo de Consentimento e Livre Esclarecimento
(TCLE), e foram realizadas utilizando-se do recurso de gravação de áudio e, posteriormente,
foram transcritas para maior aprofundamento nas análises.
Quanto à apreciação dos dados, buscou-se traçar um perl escolar do grupo pesquisado
e sua percepção sobre o projeto a partir dos encontros literários. Para isso adotou-se a análise
compreensiva-interpretativa, conforme descrito por Souza (2014) e Clandinin e Connelly (2015),
no qual possibilita analisar as regularidades e irregularidades do conjunto das narrativas tanto
nos aspectos singulares como coletivos.
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Sentido da leitura e o Projeto Remição pela Leitura - educação para
a liberdade
As narrativas dos participantes foram delineadas a partir de três perspectivas: (a) itinerário
escolar; (b) percepção sobre seu gosto pela leitura e, (c) experiência com o Projeto Educação
para a Liberdade.
O primeiro elemento apresentado pelos participantes tem relação com seu percurso escolar.
Há casos, por exemplo, dos que não conseguiram dar continuidade nos estudos, justicado por
questões familiares e socioeconômicas,
PARTICIPANTE 4: Então, eu sou remanescente de uma família muito hu-
milde e tive muita diculdade, perdi mãe, perdi avó muito cedo, então isso
dicultou o meu estudo. Aí, depois de crescer na adolescência, tive um apego
pela leitura, mas nunca tive a oportunidade, um apoio para estudar.
PARTICIPANTE 8: Eu nunca cheguei a repetir de ano, mas parei de estudar
na época por causa de condição nanceira, tinha que trabalhar durante o dia,
chegava cansado e muitas das vezes parava de estudar por esse motivo.
PARTICIPANTE 9: Na época eu gostava [de estudar], mas não tive muita
oportunidade por minha família ser uma família pobre, então eu estudei só até
os 11 anos de idade, na 3ª série.
Carreira e Carneiro (2009) destacam que pelo menos 95% das pessoas privadas de liber-
dade se enquadram na situação de pobreza, o que possivelmente dicultou que tivessem acesso à
educação ainda antes de estarem em situação de aprisionamento. Esses indicadores corroboram
com os relatos acima, no qual demonstra que a falta de acesso à escola ou a oportunidade de
continuidade nos estudos, se justica, em grande medida, devido a sua condição socioeconômica.
Tal realidade demonstra um descompasso no cumprimento de políticas que defendem o
acesso e a universalização da educação pública como um direito.
Pode-se dizer que o estado de MS se assemelha à média dos índices nacionais publi-
citados pelo Departamento Penitenciário Nacional, caracterizados pela baixa escolaridade da
população encarcerada. Nessa perspectiva, a leitura do quadro também demonstra que 99,24%
dos aprisionados em MS não obtinham o ensino superior completo, em torno de 90% não ha-
viam completado o ensino médio, e ainda, cerca de 65% das pessoas presas não tinham o ensino
fundamental completo (DEPEN, 2015).
Cabe relembrar que a população prisional é composta por indivíduos adultos
que não permaneceram na escola regularmente, em tempo oportuno, durante
o período socialmente esperado para acessar a educação escolar formal. Por-
tanto, trata-se de sujeitos oriundos das camadas populares que incorporaram o
fracasso escolar às suas trajetórias, como concepção individualizada e carac-
terística neoliberal (TORRES, 2019, p. 259).
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Sobre esse assunto, Charlot (2001) destaca que a relação dos alunos com o saber e com a
escola não é a mesma nas diferentes classes sociais. Para o autor, as camadas populares enfrentam
maiores diculdades na escola, considerando que esses estudantes possuem comportamentos
distintos em face de diferentes tipos de saberes ou de aprendizagens.
As disparidades são postas às camadas populares em razão da escassez de capitais, em
especial, de capital cultural, o que favorece para o indivíduo encontrar diculdades em acessar
os códigos de leitura e/ou literários. Consecutivamente levando-o ao fracasso escolar e, com isso,
à manutenção do status quo, considerando que a escola ocupa-se de transmitir o capital cultural
pensado para e a partir da legitimidade das elites (BOURDIEU, 1988).
Como consequência, àqueles que não conseguiram concluir os estudos básicos, muitas
vezes, carregam a culpa e vergonha por não deter o conhecimento, ou não terem se esforçado
o bastante, negando inclusive o processo de exclusão que lhe usurpou ou dicultou o acesso à
escola (CAPUCHO, 2012). Tal discurso sombreia a negação de direitos e o processo de exclusão
social a que estão sujeitos.
Nesse sentido, a luta dos jovens oriundos de camadas populares contra o fracasso escolar
continua sendo um dos principais desaos das políticas públicas educacionais.
Para Arroyo (2014), a chegada dos educandos com vidas tão precarizadas às escolas obriga
a docência repor suas bases do viver com a devida centralidade nos processos de aprender, de
formação e desenvolvimento humano. O direito à educação, ao conhecimento e à cultura está
atrelado às formas de viver nas tramas do presente. Sendo assim, quando se ignora a precari-
zação do viver dos educandos, há a responsabilização de uns e outros pelo fracasso escolar. As
vítimas, nesse caso, ainda são responsabilizadas pelos processos escolares e por sua própria
condição de pobreza.
Dessa forma, para cumprir o propósito de contribuir com a modicação na vida dos
estudantes, é preciso considerar “Outras pedagogias para Outros sujeitos” no espaço escolar, de
forma que a educação se transforme em um local de humanização e de construção de um novo
espaço do viver.
Freire (1967) compreende que para romper com esse círculo de subjugação das camadas
populares, ou como denomina “dos condenados da terra”, é inadiável e indispensável construir
processos educativos - dentro das condições históricas de sua sociedade-pautados por uma ampla
conscientização das massas brasileiras, por meio de uma educação que as coloquem em uma
postura de autorreexão e de reexão sobre seu tempo e seu espaço.
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Para o educador, a educação humanista e libertadora deve passar por dois momentos
distintos: o primeiro em que os oprimidos desvelam o mundo da opressão e comprometem-se
na práxis, com a sua transformação; e o segundo, em que, transformada a realidade opressora,
a educação deixa de ser do oprimido e passa a ser a educação dos homens em processo de per-
manente libertação (FREIRE, 1987).
Nesse sentido, a educação se estabelece como uma prática educativa que poderá alcan-
çar efetividade e ecácia na medida em que abarca a participação livre e crítica dos educandos,
inclusive, levando-os a compreensão a respeito de seus percursos escolares relacionados aos
contextos históricos e sociais.
Por outro lado, alguns participantes relataram que foi possível concluir os estudos apenas
no interior do espaço prisional,
PARTICIPANTE 2: [...] eu vim terminar meus estudos aqui na cadeia, cum-
prindo pena.
PARTICIPANTE 3: Tive a oportunidade de fazer uma prova, do Enceja, que
contribuiu para que eu conseguisse conquistar meu ensino médio.
PARTICIPANTE 8: Eu comecei a estudar não no presídio, mas acabei termi-
nando o ensino médio [aqui] no presídio.
A oferta da educação em prisões do ensino regular é compreendida como um direito em
si mesmo e ganha mais importância quando é direcionada ao pleno desenvolvimento humano e
às suas potencialidades, valorizando o respeito aos grupos socialmente excluídos. Essa concep-
ção busca efetivar a cidadania plena para a construção de conhecimentos, o desenvolvimento de
valores, atitudes e comportamentos, além da defesa da justiça social (BRASIL, 2007).
Cabe destacar, que embora o conceito de educação esteja bastante vinculado aos aspectos
de cultura e ao mecanismo de promoção, proteção e reparação dos direitos humanos, a assis-
tência do ensino regular em espaços prisionais ainda demonstra um índice bastante reduzido,
considerando que a estimativa é que o acesso à educação atenda a média de 10% da população
encarcerada (DEPEN, 2020a).
Alguns especialistas do tema, como Onofre (2011, 2015), Ireland (2011) e De Maeyer
(2013) sinalizam que a educação no contexto prisional é uma ferramenta adequada para o pro-
cesso formativo, no sentido de produzir mudanças de atitudes e contribuir para a integração
social do indivíduo.
Ireland (2011) destaca, inclusive, a necessidade de situar a Educação de Jovens e Adul-
tos na perspectiva da aprendizagem e da educação ao longo da vida. Na mesma direção, De
Maeyer (2013, p. 47) compreende que “Aprender ao longo da vida é deixar momentaneamente
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seu estatuto provisório de detento para se inscrever em uma perspectiva mais a longo prazo sem
acrescentar um julgamento social ao julgamento penal”.
Para Ireland (2011) a educação é sempre mediada por uma realidade complexa e no caso
prisional, torna-se ainda mais volátil. Na visão do autor, outros tipos de aprendizagem podem
servir como incentivos para eventualmente o indivíduo retomar o percurso escolar, ora inter-
rompido, sobretudo, se o mesmo possui uma escolaridade precária com experiência negativa
da escola. Assim, o projeto de leitura se estabelece como um espaço que pode possibilitar uma
nova percepção do indivíduo sobre a escola e sobre a construção de sua aprendizagem.
Cabe destacar que as ações educacionais devem ser estruturadas como políticas públicas
sistematizadas e contínuas, com a oferta de atividades que promovam a participação expressiva
dos privados de liberdade. Somado a isso, é importante reconhecer que essas ações vão além do
processo de ensinar, pois podem contribuir com os processos formativos em espaços coletivos,
produzir saberes que permitam uma formação humanizada e, consequentemente, contribuir para
que o indivíduo repense suas práticas, sua cultura e sua relação com a sociedade (JOSÉ, 2019).
Para isso, Freire (1979) compreende que nenhuma ação educativa pode prescindir de
uma reexão sobre o indivíduo e de uma análise sobre suas condições culturais. Isso implica
em dizer que a educação deve estabelecer uma relação dialética com o contexto da sociedade à
qual se destina.
Sobre outra perspectiva de análise, foi possível notar certo distanciamento de alguns
participantes quanto ao processo de leitura.
PARTICIPANTE 6: [...] eu sempre fui uma pessoa que gostei de ler, mas eu
tive essa prática mais constante depois desse projeto que eu comecei a ler com
mais anco.
PARTICIPANTE 7: [...] devido ao trabalho e outras obrigações, eu fui me
distanciando um pouco, que aqui eu redescobri esse hábito, eu redescobri
essa paixão, essa necessidade de ler e isso foi graças ao projeto.
Os relatos apontam que a cultura literária não fez parte do percurso de vida desses par-
ticipantes, o que exigia certo esforço para que se adequassem à proposta do projeto. Por outro
lado, há aqueles que já se sentiam familiarizados com o processo de ler e cultivavam o gosto
pela leitura, antes mesmo de ingressar no projeto.
PARTICIPANTE 1: Sempre gostei de ler, né. Até por conta da necessidade
[...] a gente viaja né. Você busca conhecimento, você cresce no seu dia a dia,
na sua caminhada, ajuda, fortalece, sempre gostei.
PARTICIPANTE 4: Gosto [de ler], apesar de ser muito seletivo na minha lei-
tura. [...] eu procuro mais para o lado do que eu quero saber, do que eu gosto
mesmo, não leio qualquer coisa.
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PARTICIPANTE 5: Gosto muito de ler, inclusive, me considero um leitor
compulsivo e acho a leitura muito importante na vida da gente.
PARTICIPANTE 6: Na verdade essa prática da leitura, eu sempre tive, eu
sempre gostei de ler quando criança, eu lia revistas de quadrinhos, eu sempre
fui uma pessoa que gostei de ler.
Diante dos relatos, nota-se a importância de ações que valorizam atividades de natureza
literária, as quais visam potencializar o gosto pela leitura de forma a contribuir com a constru-
ção de práticas que promovam o desenvolvimento cultural, intelectual e o potencial criativo do
indivíduo.
Candido (2004) compreende que a literatura faz parte de uma das atribuições vinculadas
aos direitos humanos. Sua análise indica que o direito não deve car restrito aos bens fundamen-
tais como moradia, alimentação, instrução e saúde; mas o direito se amplia na medida em que se
alcança “bens culturais”, como a arte ou a literatura. Em sua visão, a sociedade não compreende
o indivíduo como sujeito propenso a acessar bens culturais, por exemplo, ler Dostoievski ou
ouvir os quartetos de Beethoven (CANDIDO, 2004).
Nessa perspectiva, incluir as práticas literárias ao repertório de bens culturais possibilita
o acesso ao conhecimento, auxilia no processo de conscientização e para a incorporação de
capital intelectual, elementos reconhecidos como direitos fundamentais e inerentes à vida em
sociedade e, por isso, estão na base da reexão sobre os direitos humanos e se colocam como
desaos. Contudo, são acessos negados aos indivíduos das camadas populares quanto à formação
do gosto literário em período anterior à prisão e trata-se de desao ainda maior aos entusiastas
da leitura e escrita em ambientes de privação de liberdade.
Soares (2009, p. 120) complementa que “o letramento é, sem dúvida alguma, pelo menos
nas modernas sociedades industrializadas, um direito humano absoluto, independentemente das
condições econômicas e sociais em que um dado grupo humano esteja inserido”. Além disso, Rojo
(2002) defende que a leitura é importante para a cidadania, para escapar dos textos e interpretá-
-los, de relacionar com outros textos de maneira situada na realidade social, de avaliar posições
e ideologias que constituem seus sentidos e, enm, de trazer o texto para a vida e colocá-la em
relação com ela.
Em princípio, não basta apenas oferecer acesso a arte e a literatura, é preciso que o leitor
aprenda a fazer uso do ler e do escrever, e saiba responder às exigências de leitura e de escrita
que a sociedade faz continuamente (SOARES, 2009). Entende-se, nesse sentido, que oferecer
acesso ao letramento literário, signica contribuir com a perspectiva dos direitos individuais à
pessoa privada de liberdade.
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Por sua vez, Pereira (2020) considera que a prática literária está presente na vida e no
cotidiano dos sujeitos encarcerados como uma espécie de “ferramenta de sobrevivência” às
adversidades, ociosidade, privação de direitos sociais, injustiças, e opressões vivenciadas no
cárcere. Diante de tal cenário, a leitura em ambiente penitenciário torna-se prática essencial-
mente indispensável “[...] na medida em que serve à administração penitenciária como forma
de ocupar a rotina dos sujeitos, serve a estes como forma de interpretação da vida e na formação
do pensamento autônomo, crítico e, por isso, transformador” (PEREIRA, 2020, p. 104).
Em outra direção, De Maeyer (2013, p. 47) entende que “Ler não é a atividade de um
ser passivo, de alguém que quer passar o tempo. Ler é uma relação dinâmica com o texto, com
a imagem, com o lme, com as questões, com a história”.
Nesse sentido, ao considerar a leitura como uma possibilidade de educação e de recon-
ciliação com o ato de aprender, o autor traz uma reexão com relação ao espaço da biblioteca,
pois considera que esse local pode deixar de ser um cômodo muito vinculado a um depósito
silencioso, utilizado como consumo e apropriação simbólica de uma cultura estrangeira, e pos-
sa contribuir de forma signicativa para se estabelecer uma nova cultura literária no ambiente
prisional. Sua visão é que esse espaço pode se (re)congurar como um local de produção de
cultura e de expressão do universo atual de cada um, inscrevendo-se na perspectiva da educação
permanente (DE MAEYER, 2013).
Para Freire (1981, 1989), ler implica sempre na percepção crítica, interpretação e re-escrita
do lido, na compreensão, portanto, da relação entre leitura do mundo e leitura da palavra, de
assumir uma postura crítica como sujeito ativo, em especial, compreendendo o condicionamento
histórico-sociológico do conhecimento.
No que concerne a possibilidade da remição pela leitura, os participantes estabelecem
tanto a importância de acesso ao conhecimento, como da possibilidade de reduzir a pena.
PARTICIPANTE 3: A remição é uma consequência. Eu vejo ela como uma
consequência, se eu ganhar isso, legal. Mas eu gosto da aventura que isso me
gera, da viagem no meu psicológico, na minha alma, no meu coração, no meu
espírito que isso me leva, no prazer que isso me dá, na liberdade que isso me
dá.
PARTICIPANTE 4: [...] eu acho que o mais interessante é o aprendizado den-
tro do projeto.
PARTICIPANTE 5: A remição não deixa de ser importante porque diminui a
quantidade da nossa pena né, mas eu acho que o mais importante é o conheci-
mento adquirido [...].
PARTICIPANTE 7: É um dos pontos importantes, mas eu não vejo como um
ponto mais importante porque existem outras formas de remição. Eu acredito
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que o que a gente obtém no livro, é mais uma forma de amenizar também a situ-
ação na qual nos encontramos, mas não é o ponto mais importante.
PARTICIPANTE 8: Pra mim [o mais importante] é o desenvolvimento pessoal
e intelectual.
Observa-se que os participantes reconhecem que as ações de leitura e escrita ultrapassam
a perspectiva de progredir de regime pela via da remição de pena, mas também possibilitam a
ampliação do acesso ao conhecimento. Nas palavras do participante 3: “[...] eu gosto da aventura
que isso me gera, da viagem no meu psicológico, na minha alma, no meu coração, no meu espírito
[...]”; ou como diz o participante 8: “O mais importante é o desenvolvimento pessoal e intelec-
tual”. Tais relatos justicariam, em tese, a motivação e a assiduidade dos participantes nas ações
desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa. Nota-se, portanto, que o interesse pelo conhecimento pode
caminhar junto com a possibilidade de remir os dias de pena.
Já o participante 7 comenta que “[...] existem outras formas de remição”. Sobre isso, cabe
mencionar, que o “presídio IPCG”, oferece educação na modalidade EJA, cursos prossionalizantes
e diferentes atividades de trabalho, entre elas, artesanato, barbearia, cantina, faxina, marcenaria,
serralheria, reciclagem de lixo, recolhimento de marmitas, etc. Ademais, a unidade conta com o
trabalho remunerado na fábrica de gelos, padaria, armação de ferragem, costura de bola, cozinha,
beneciamento de mandioca, manufatura de crina de cavalo, entre outras (IPCG, 2020).
Cabe pontuar, ainda, que a pessoa presa que labora “deve ou deveria” receber remuneração
não inferior a 3/4 do salário mínimo (LEP/84), contudo, segundo dados do Depen (2017), pelo
menos 41% da população prisional em atividade laboral recebiam menos que o valor estipulado
pela LEP, no ano de 2017. Apesar do não cumprimento da legislação, ainda assim, a opção em
trabalhar de forma remunerada torna-se mais atrativa do que a participação em outros projetos.
Nesse sentido, quando o participante 7 aponta que existem outras formas de remição, entende-se,
que não seria o fator da “redução dos dias de pena” a principal motivação por sua participação no
projeto. Em vista disso, mesmo diante de outras possíveis ofertas de trabalho ou estudo que possam
surgir, até o momento, para esses participantes, o projeto de leitura apresenta-se como diferencial
para o crescimento pessoal e intelectual.
Em outro momento, os participantes discorreram sobre suas percepções quanto aos bene-
fícios acarretados pelo processo de ler, escrever e falar.
PARTICIPANTE 2: A leitura me despertou o interesse, vontade de ler, então
melhorou muito meu vocabulário, minha forma de escrever também.
PARTICIPANTE 5: [...] melhorou a dicção, a escrita, a própria leitura em si.
PARTICIPANTE 8: [...] no começo a gente conforme vai lendo, vai aprendendo
a se expressar, escrever, tudo a gente percebe a diferença. Agrega novas palavras.
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Segundo os relatos, a leitura serviu como um instrumento de enriquecimento da lingua-
gem e escrita, agregou novas palavras, melhorou o vocabulário e despertou maior interesse na
aprendizagem.
De fato, a leitura promove habilidades cognitivas e metacognitivas que possibilitam que
o indivíduo decodique símbolos, capte signicados, intérprete sequências de ideias ou eventos,
estabeleça analogias, comparações, linguagem gurada, relações complexas, habilidades de fazer
previsões sobre o sentido do texto, de construir signicados, de reetir sobre o signicado do
que foi lido e tirar suas conclusões (SOARES, 2009). Todos esses elementos são necessários
para que o leitor compreenda o texto e possa, posteriormente, redigir uma resenha de acordo
com a obra literária lida. Tais competências, naturalmente auxiliam no aperfeiçoamento de sua
linguagem e na forma de se comunicar com o outro.
Entretanto, Soares (2009) também aponta que é difícil denir as competências neces-
sárias para evidenciar o domínio de um letramento funcional, considerando que não se trata
simplesmente de um conjunto de habilidades individuais de leitura e escrita, mas em como essas
habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais.
Em que pese a possibilidade de socialização proporcionada pelo processo de leitura e
escrita mediante as experiências e trocas vivenciadas no projeto, é preciso considerar, ainda,
que a concepção e a instrumentalização da prática literária suportam interferências forjadas de
acordo com as necessidades e condições sociais especícas de determinado momento histórico.
Diante disso, questionou-se qual o impacto sociocultural proporcionado pela participação no
projeto de leitura. Ou seja, em que medida a ação interfere na vida, nos atos, no cotidiano e nas
perspectivas dos indivíduos sobre sociabilidade em grupo e em sociedade?
A partir do entendimento dos participantes, a participação nas ocinas modicou con-
cepções a priori e a maneira de enxergar o mundo,
PARTICIPANTE 1: [...] porque na medida que você vai lendo, você vai tendo
coisas que vai te resgatando, você volta no seu eu, no seu mundo [...] Aí você
olha para o passado, coisas que você lutou, que você buscou e hoje você está
aqui nessa situação né. Que a gente mesmo criou. Mas através da leitura,
através do ensinamento, através desses encontros, eu tenho que realmente ser
um ser humano mais humano, digamos assim.
PARTICIPANTE 3: A minha visão de mundo expandiu muito, expandiu muito
pelo lado das religiões, pelo lado das ideologias, pelo lado das etnias, porque
aborda vários assuntos a literatura, e tem contribuído para eu ver o mundo de
vários pontos de vista, de várias maneiras de se interpretar o mundo, não
do meu modo de ver o mundo, mas procurar ver a visão de outras pessoas, de
outros autores, de personagens que passam por situações muito difícil, muitas
vezes até nas suas histórias, como eles lidam com isso, como lidam com as
vitórias, com as derrotas, com os relacionamentos, e isso tem contribuído na
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minha maneira de enxergar o mundo.
PARTICIPANTE 6: Na minha condição de custodiado, eu vivo com outras
pessoas, então o meu relacionamento dentro de uma cela hoje, é muito mais
seguro, muito mais agradável por conta da leitura, eu atribuo isso a leitura,
porque através da leitura a gente pode se policiar, a gente pode talvez estar
tendo, como eu já disse, outro ponto de vista, e a gente saber resolver as ques-
tões que são impostas no dia a dia com o auxílio da leitura. A leitura traz muita
autoajuda pra gente.
PARTICIPANTE 7: Houve uma mudança bem grande, acho que cada livro
que você lê, ele te marca de uma forma especial, ele te ensina algo. Então
constantemente você está passando por uma transformação, você está vendo
coisas diferentes, observando situações diferentes, e aprendendo a lidar com
essas situações. Então é uma mudança gradativa, mas ela é constante.
Na ótica dos participantes, a experiência literária tem contribuído para que repensem
sua trajetória de vida, se tornem mais humanos, compreendam melhor a visão dos colegas no
interior das celas, saibam lidar com outros pontos de vista e aprendam a lidar com situações
diversas. Nesse caso, ca evidente os benefícios que o projeto tem contribuído para o cotidiano
desses indivíduos.
O participante 3 demonstra indícios de que sua percepção sobre a realidade social se
modicou para além de sua vivência no cotidiano da unidade prisional, quando relata que “[...]
sua visão expandiu muito pelo lado das religiões, pelo lado das ideologias, pelo lado das etnias
[...]”. A narrativa caminha na direção proposta por Freire (1989) quando menciona sobre a im-
portância do ato de ler. Para o educador, a compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura
crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto, no qual cria-se um movimento
do mundo à palavra e da palavra ao mundo, de forma que a leitura do mundo possa ser escrita
ou reescrita, ou seja, de transformá-la por meio de sua prática consciente (FREIRE, 1989).
o participante 6 percebe que a leitura modicou a interação com os colegas de cela
“[...] então o meu relacionamento dentro de uma cela hoje, é muito mais seguro, muito mais
agradável por conta da leitura [...]”. A narrativa demonstra as potencialidades humanísticas e
certa simbiose com a leitura que atua como meio motivador de aproximação entre os indivíduos
e, com isso, ameniza as tensões em ambiente hostil e de superlotação (PEREIRA, 2020).
Na mesma direção, Soares (2009) aponta que o letramento “em perspectiva mais radical”,
torna-se responsável por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de
poder presente nos contextos sociais.
Entende-se, assim, que projetos literários na prisão, contribuem para o alargamento da
percepção crítica do indivíduo, de forma que a leitura faça sentido para si, em processo reexivo
sobre seus próprios atos e, sobretudo, para a compreensão da vida em sociedade.
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Notas nais
Este artigo procurou vericar como participantes de projeto de leitura em unidades prisio-
nais percebem práticas literárias e os reexos proporcionados na vida e no cotidiano penitenciário.
Nota-se, a partir de suas narrativas, que as ações literárias têm contribuído, signicativa-
mente, para os avanços de capacidades relacionadas às práticas de leitura, escrita, em especial,
para a ampliação de códigos linguísticos dos participantes. Assim como vem modicando a
forma como agem, pensam, interagem com os demais colegas em condição de aprisionamento
e nas reexões sobre história e problematização da própria realidade. Isto implica em dizer, que
projetos dessa natureza, contribuem fortemente com o processo de socialização e para o exercício
da cidadania e integração à sociedade no período posterior à privação de liberdade.
Nesse sentido, considera-se fundamental que o Estado brasileiro (união, estados e muni-
cípios) institucionalize políticas educacionais de fomento da leitura e escrita, de caráter perma-
nente, e com o investimento em bibliotecas e acervo literário nas prisões brasileiras, de forma
a alcançar maior quantitativo de pessoas, especialmente ao considerar a restrição de oferta da
educação formal no sistema penitenciário.
Por m, a resolução de duas frentes será determinante para a expansão da oferta e garantia
do acesso às práticas de leitura e escrita, que desdobram-se em remição pela leitura em espaço
de privação de liberdade, a saber: (1) aprovação de Projeto de Lei que altera a LEP e introduz a
previsão da remição pela leitura e escrita na prisão e a (2) gestão da política penitenciária pelo
Depen, em parceria com as Secretarias estaduais de modo a instituir, de fato, um Programa
Nacional de remição pela leitura.
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Recebido: 07 de Dezembro de 2021.
Publicado em: 20 de abril de 2021.
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