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EDITORIAL

 

 

 

Caro(a) leitor(a),

 

 

Rememorar e contar a história ‘de si’ pela geografia afetiva do campo-roça na lembrança ancestral dos familiares mortos e vivos me parece inusitado. 

 

Falar da geografia que me apavorou com o seu conteúdo espacial e me arrebata agora pela possibilidade de a emoção orientar o entranhamento interno e ‘conhecimento de si’, por conduzir o encantamento para arriscar a dizer algo sobre os lugares de/e sentimentos, desperta uma ousadia e um prazer.

 

Nunca fui boa aluna em geografia do espaço. Eu estudava para decorar e responder ao “método” de ensino que conheci por intermédio de minha mãe. Ela perguntava e eu respondia o que passava horas lendo e repetindo, até gravar. Toda resposta era “ao pé da letra” ou “a palmatória cantava no centro”, dizia ela, se eu não soubesse a lição.

 

E a palmatória cantou incontáveis vezes, deixando marcas na palma da minha mão, apagadas pelo tempo. Mas outras se mantêm na memória. Para seguir, fiz adaptações, pois era preciso resiliência.

 

Olhar aquele troço pendurado na parede da casa, na roça, dividindo o espaço com o altar dos santos de devoção era sacrilégio, na minha opinião, pois ao reverenciar o altar, espaço físico do sagrado onde eu agradecia e pedia proteção a Deus para me livrar daquilo que me feria e despertava ódio, a palmatória lá estava a espreitar o meu esquecimento.

 

Pouca memória guardo da geografia espacial e me pergunto sobre a forma de ensinar o seu conteúdo hoje, com os dispositivos tecnológicos e assistentes virtuais; hoje que a um toque dos dedos, ao comando de uma voz, sabemos a previsão do tempo, a distância, os limites entre dois pontos!

 

Essas respostas eu não saberia dar, já que estavam nas páginas de um papel branco em que eu não escrevia, nem manuseava, colorindo-as com a minha imaginação. Mas, ainda lembro da escola da roça que ficava sob o tempo, debaixo do céu enluarado com uma fogueira que clareava as noites escuras e nos blindava da ameaça de bichos da mata. Ali eu conhecia, brincando, o traçado das letras.

 

Aprendi com meu pai a posicionar o meu corpo, a tomar o rumo e não me perder na mata, saberes de meus avós e bisavós. A geografia das emoções morava no meu corpo, lugar de sentimentos despertados, conforme a situação, o lugar e o pertencer.

 

Tudo era ensinado à “boquinha da noite”, depois de ajudar a colocar as galinhas no poleiro e a tirar a cangalha do jegue e do muar para alimentá-los com raiz de mandioca. Esse aprendizado, compartilhado com os vizinhos, o ‘outro’, era invisível no urbano.

 

Acontecia no terreiro, varrido no final da tarde, que exalava um cheiro de poeira da terra batida, seca ou molhada, e se transformava em um grande livro/caderno onde as histórias eram contadas com letras grafadas com um lápis incomum, peculiar àquele lugar: um graveto ou uma pedra de carvão.

 

Trazer a público as memórias dos meus lugares de viver e de cuidar é inesperado, inimaginado. Que reviravolta! A berenga, caneta de meu pai, e o graveto, lápis da infância, reunidos nas páginas de uma revista é a novidade e o espanto, que espero inspirador de muitas outras histórias individuais, do ‘conhecimento de si’ e do outro, reveladoras da pluralidade das emoções humanas construídas nas relações e convivências.

 

Que a leitura possa despertar as melhores emoções!

 

 

Maria Angélica G. Coutinho

 

Pedagoga. Doutora em Família na Sociedade Contemporânea

pela Universidade Católica do Salvador (UCSal).