EU/NÓS: HISTÓRIA E AUTOETNOGRAFIA

       

        I/WE: HISTORY AND AUTOETNOGRAPHY

                                      

                                      YO/NOSOTROS: HISTORIA Y AUTOETNOGRAFÍA

 

Elaine Pedreira Rabinovich¹

 

 

¹ Universidade Católica do Salvador (UCSal)

Recebido: 02.09.2023 Aceito: 02.10.2023

 

 

 

RESUMO

Trata-se de um relato de uma pesquisa longitudinal sobre a vinda ao território brasileiro da família da autora de origem judaica e russa. Essa vinda foi realizada por meio de um programa de colonização que a instalou em uma área rural do Estado do Rio Grande do Sul. Esse estudo se constitui de três grandes blocos. O primeiro pode ser descrito como um nível macrossocial do contexto em que os fenômenos ocorreram, na Rússia e no Brasil; o segundo nível decorreu da leitura de cartas dos administradores da Colônia datadas do começo do século XX lidas como sendo o presente vivido na colônia; o terceiro nível foi o nível do eu/nós – pois falar de família é sempre falar “nós”, e o que o ser pesquisadora e participante da pesquisa ao mesmo tempo revelou sobre a pesquisadora e sobre o passado de sua família por ela vivenciado no presente. Neste terceiro nível, a metodologia foi a autoetnografia, enquanto nos níveis anteriores trata-se de pesquisa sócio-familiar-histórica em fontes documentais e em entrevistas. Trata-se de um estudo múltiplo e complexo que perpassa muitas áreas, mas a principal conclusão coloca a questão da intersubjetividade vista através de uma inerência histórica refletida em espelhos dirigidos a várias dimensões temporais pois, como pesquisadora, vi-me como parte e partícipe de uma mesma história contada de várias maneiras. Esses espelhos refletiram um outro que sou eu e lançaram a percepção de que também, como pesquisadora, sou narrada pelo outro.

 

Palavras-chave: Colonia Philippson; Judeus russos; Imigração.

 

 

ABSTRACT

This is an account of a longitudinal research about the author's russian jewish family’s arrival to Brazilian territory. This arrival was carried out through a colonization program that installed the family in a rural area of the State of Rio Grande do Sul. This study consists of three large blocks. The first can be described as a macro-social level of the context in which the phenomena occurred, in Russia and Brazil; the second level stemmed from the reading of letters from Colony administrators dated to the beginning of the 20th century, read as being the present lived in the colony; the third level was the I/we level – because talking about family is always talking about “we”, and about that being a researcher and research participant at the same time revealed about the researcher and about her family's past experienced by her in the present. In this third level, the methodology was autoethnography, while in the previous levels it was about socio-familiar-historical research in documentary sources and interviews. It is a multiple and complex study that permeates many areas, but the main conclusion poses the issue of intersubjectivity seen through a historical inherence reflected in mirrors directed at various temporal dimensions. This occurred because, as a researcher, I saw myself as part and participant of the same story told in different ways. These mirrors reflected another that is me and launched the perception that, as a researcher, I am also narrated by the other.

 

Keywords: Colonia Philippson; Russian jews; Immigration.

 

 

RESUMEN.

       

Este es un relato de una investigación longitudinal sobre la llegada a territorio brasileño de la familia del autor, de origen judío y ruso. Esta llegada se llevó a cabo a través de un programa de colonización que lo instaló en una zona rural del Estado de Rio Grande do Sul. Este estudio consta de tres grandes bloques. El primero puede describirse como un nivel macrosocial del contexto en el que ocurrieron los fenómenos, en Rusia y Brasil; el segundo nivel surgió de la lectura de cartas de administradores de la Colonia fechadas a principios del siglo XX, leídas como el presente vivido en la colonia; el tercer nivel fue el nivel yo/nosotros – porque hablar de familia es siempre hablar de “nosotros”, y lo que ser investigadora y participante de la investigación al mismo tiempo reveló sobre la investigadora y sobre el pasado de su familia que ella experimentó en el tiempo del presente. En este tercer nivel la metodología fue la auto etnografía, mientras que en los niveles anteriores se trata de investigación sociofamiliar-histórica en fuentes documentales y entrevistas. Es un estudio múltiple y complejo que permea muchas áreas, pero la conclusión principal plantea el tema de la intersubjetividad vista a través de una herencia histórica reflejada en espejos dirigidos a varias dimensiones temporales debido a que, como investigador, me vi como parte y participante de la misma historia contada de diferentes maneras. Estos espejos reflejaron a otro que soy yo y lanzaron la percepción de que, como investigador, también soy narrado por el otro.

 

Palabras clave: Colonia Philippson; Judios rusos; Inmigración.

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

O Barão e a Baronesa de Hirsch perderam seu filho único, Lucian, em 1887, e decidiram que os judeus desafortunados seriam os seus herdeiros. Dentre esses, cerca de cinco milhões de judeus na Rússia, além de empobrecidos, estavam sendo duramente perseguidos. O Barão idealizou um programa de imigração destes judeus para países onde seriam colonos, isto é, trabalhariam com as próprias mãos na terra e, com isto, estariam se “regenerando”. Criou uma companhia, a Jewish Colonization Association (Associação de Colonização Judaica - ICA), encarregada desta campanha migratória. Uma dessas famílias russas, morando na Bessarábia, atual Moldávia, foi a do meu bisavô, sua esposa e filhos. Vieram, em 1904, para a primeira colônia fundada no Brasil, na zona rural de Santa Maria da Boca do Monte, interior do Rio Grande do Sul. Esta colônia foi denominada Philippson, nome do diretor da rede ferroviária belga que também atuou no Brasil. O bisavô se chamava Abraham e ela, Beile, sendo ele o responsável religioso pela comunidade.

A partir dos dados acima, e do fato de que membros da minha família permanecem atualmente como únicos proprietários de parte do que foi outrora a Colônia Philippson, iniciei um trabalho de pesquisa com a base documental por meio de cartas dos administradores dessa colônia à central da ICA, localizada em Paris, desde a sua constituição até praticamente o seu fim, em que esses relatavam os acontecimentos pertinentes ao processo de sua implantação e de seu desenvolvimento (Rabinovich, 2015).

Da leitura destas cartas, foi-me possível concluir que, já em 1914, o projeto havia fracassado, com os jovens saindo da colônia a fim de procurar meios de sobrevivência nas cidades, para si e para suas famílias. O filho mais velho de Abraham, Benjamin, meu avô, iniciou a compra de terras destes colonos que as abandonavam, e seu filho mais velho, Abrão, continuou a comprar terras, de modo que apenas três famílias de ex-colonos passaram a ser as únicas proprietárias das terras outrora pertencentes à Colônia, além das terras vendidas pela própria ICA a outros fins. Destas três famílias, apenas uma continua proprietária de parte destas terras: a família dos descendentes do assim denominado nas cartas Reverendo Abraham. Este foi o elo para começar o estudo: porque essa família permanece nas terras, sonhadas pelo Barão como solução para o problema do anti-semitismo existente na Rússia no final do século XIX? Como compreender este enraizamento? Que dinâmicas poderiam explicá-la, além da possibilidade financeira de realizar a compra das terras? Porque as outras famílias venderam as terras e esta as comprou e manteve-se nela até hoje na denominada Fazenda Philippson?

 

ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO-BASE

 

A pesquisa, realizada durante muitos anos, acabou por se constituir como um pós-doutoramento sob a supervisão da Profa Dra Marina Massimi pela Universidade de São Paulo. Esse estudo pode ser visto como se constituindo em três grandes blocos. O primeiro pode ser descrito como um nível macro-social do contexto em que os fenômenos ocorreram. Neste nível, estão os relatos sobre o que acontecia na Rússia na época em que os antepassados vieram ao Brasil e o que acontecia no Brasil. Como macrossistema, haveria os ideais e valores. Na Rússia, no século XIX ocorreram profundos embates ideológicos, envolvendo os europeus, em decorrência os judeus. Os judeus eram uma “nação” na Rússia, cerca de cinco milhões que, embora confinados ao Pale of Settlement, estavam em plena ebulição de ideias e de conflitos ideológicos, como entre os judeus tradicionais e os iluministas. Os conflitos que assolaram o poder constituído russo, o czarismo, incidiram também sobre os judeus no que Klier (1995) denominou como um estigma secreto – o elemento oculto na judeofobia –, um apelo ao anti-semitismo que permanece até os dias de hoje tanto na Rússia como em outros países europeus. Assim, os pogroms – ataques por cossacos a pequenas comunidades em que viviam os judeus e seu assassinato - sem dúvida, foram consequência de um quadro geral em que a “questão judaica” foi apenas um sinal, mas que afetou diretamente a vinda dos antepassados ao Brasil.

Outro nível de leitura foi o passado visto como presente, e agora, o presente visto como passado. Porque, para se entender o que ocorre no atual conflito envolvendo esta parte do mundo – Rússia, Ucrânia, Moldávia, Europa – é necessário voltar no tempo. Contudo, ao ler as cartas dos administradores da Colônia Philippson, no tempo presente, fiquei esperando ansiosamente por um futuro – o que aconteceu depois? – que já era um passado (até remoto, por estarmos em 1904-1914). Assim, este nível em que os tempos se misturam, neste estudo está representado pelas cartas dos administradores da Colônia Philippson, pelas cartas e documentos da Direção Geral da ICA e pelos meus comentários a elas.

O terceiro nível é o nível do eu/nós – pois falar de família é sempre falar “nós” –, falando de mim e da minha família a partir destes níveis acima descritos e retornando ao começo: a chegada à “terra prometida”. Neste terceiro nível, objeto desta parte do estudo, assinalo alguns aspectos metodológicos referentes à auto-etnografia e porque assimilar este trabalho a tal método; em seguida, recupero os elementos já descritos como autobiográficos no texto para reagrupá-los de modo a poder aprofundar o seu sentido; finalmente, espero poder compreender um pouco mais como eu sou herdeira do Barão de Hirsch, positiva e/ou negativamente. Este é o plano para esta parte final deste trabalho.

A respeito do método, Cabral e Lima (2005, p. 364), ao proporem um modelo de como fazer uma história de família, apoiam-se em Merleau-Ponty (1964, p. 109) para enfatizar que devemos compreender que a “a verdade a que tivermos acesso deverá ser alcançada, não à custa, mas através de nossa inerência histórica”. Este estudo parte igualmente de um princípio de “inerência histórica” como ponto de partida para alcançar uma “verdade”. Devido a isto, a auto-análise – um dos possíveis “através” a que se refere Merleau- -Ponty – compõe o método, em conjunto com análises interpretativas que não estão diretamente relacionadas à pesquisadora, mas que decorrem do seu ponto de vista como um membro do objeto em estudo: uma família em seu contexto sócio-histórico e as injunções pelas quais passou, inclusive de ordem simbólica, e as consequências das decisões que tomou e que resultaram em “fatos” aos quais podemos ter acesso por fontes várias.

Não se trata de discutir aqui a neutralidade científica porque esta já foi descartada desde a descoberta da teoria da relatividade por Einstein, pela qual toda observação sempre se dá a partir de um observador situado. No entanto, implica na discussão sobre o relativismo e o alcance universal pretendido pela ciência. Para Goubert (com. pes., 1999), a história não é uma ciência porque os fatos nunca se repetem nem podem ser preditos. Para ele, “a história é filha do presente, de um presente imanente, ao mesmo tempo imóvel e mutante” (Goubert, 2000, p. 2), donde o passado ser sempre interpretado à luz do presente. Para ele também (Goubert, 2000, p. 1), “a passagem de uma fronteira é sempre história: seja uma história de vida, uma história vivida, uma história contada: sem história, não há história”. Prossegue este autor, referindo-se à etimologia do termo história – pesquisa –, como uma tentativa de desvelamento da verdade, onde “traçar “sua” história, ter uma história, dizer sua história, é franquear uma passagem, passar fronteiras, atravessá-las, enriquecer-se após tê-las descoberto, reconhecido, balizado, trate-se de fronteiros de tipo geográfico, civilizatório ou cronológico” (Goubert, 2000, p. 2). E complementa: “é o se libertar que permite a história”, donde fazer história é “ser” conforme a vocação de toda pessoa humana (Goubert, 2000, p. 2). Para Goubert, ao se percorrer o caminho e franquear passagens, vamos compreendendo nossa própria identidade.

Sabina Loriga, professora e pesquisadora em história da Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales, em artigo denominado “O eu do historiador” (Loriga, 2012), propõe quatro maneiras de abordar o objetivismo e o subjetivismo em história: uma subjetivista, que visa a ressurreição do passado, havendo o historiador cronista e o historiador artista; uma objetivista, visando mostrar como o passado realmente ocorreu; uma objetivista crítica, que considera o passado como uma reconstrução a partir do presente em que cada historiador é produto de sua época e sua obra reflete o espírito de seu tempo; e, finalmente,  propõe um “subjetivismo bom”, que coloca em primeiro plano a interpretação, pensar a partir da documentação, esclarecer os aspectos obscuros, admitir o grau inevitável de controvérsia, interpretar de modo plausível, aceitar a existência de um fundo impenetrável e opaco, reconhecer sua subjetividade e “transformá-la em fonte de conhecimento. Ele deve, sobretudo, descobrir a historicidade do seu eu” (Lorega, 2012, p. 254). Assim, “não só o historiador não pode apagar a sua personalidade, mas não deve mesmo fazê-lo, pois renunciaria a uma fonte fundamental de conhecimento” (Lorega, 2012, p. 255). Nesta direção, a análise autobiográfica seria um modo de enriquecer o estudo. Além disto, a boa subjetividade é marcada “pela sua abertura ao outro e ao inesperado” (p. 257). Donde o método pode ocorrer à deriva.

De Ricoeur, em Temps et récit, Loriga recolhe a seguinte citação: “Através do documento e por meio da prova documental, o historiador é submetido ao que, um dia, foi. Ele tem uma dívida em relação ao passado, uma dívida de reconhecimento em relação aos mortos que fazem dele um devedor insolvente” (Ricoeur, 1983-1985, t. III, p. 253 apud Loriga, 2012, p. 256).

Assim, por meio do pensamento desses historiadores, podemos compreender que, mesmo não sendo um historiador, atravessamos questões às quais os historiadores têm dado, não apenas atenção, como divergido através dos séculos, como, aliás, os demais pensadores de outras áreas de conhecimento. Dentro desta divergência, e devido a ser eu psicóloga, evidentemente o polo subjetivista se impôs. Além disto, coloco-me como devedora insolvente das gerações anteriores e tive dificuldade em aceitar o abismo de “um fundo impenetrável e opaco”, apontado por Loriga (2012), com o qual me defrontei ao mergulhar na arqueologia de minha identidade e seu contexto familiar.

Ao tomar a própria família como objeto de estudo, eu não havia ainda começado o grupo de estudo denominado – Família, (auto)biografia e poética – mas este estudo já fazia parte dele e, mais ainda, era um prenúncio de para onde o grupo foi se conduzindo: explorar as raízes individuais para a construção em grupo de uma raiz brasileira coletiva pelo método da auto-etnografia, no caso do grupo FABEP, realizada de modo colaborativo.

A auto-etnografia é uma investigação etnográfica que utiliza materiais autobiográficos do pesquisador como dados primários, enfatizando a análise cultural e a interpretação dos comportamentos e experiências do pesquisador em relação aos outros sociais. A auto- -etnografia é etnográfica como orientação metodológica, cultural em sua interpretação e autobiográfica em seu conteúdo (Chang, 2008). Segundo Ellis (2004), a autoetnografia é uma pesquisa, escrita, história e método que conectam o autobiográfico ao cultural, social e político. Suas formas compreendem a ação concreta, a emoção, a corporeidade, a autoconsciência e a introspecção, retratadas em diálogos, cenas, caracterização e enredo. Assim, a autoetnografia implica nas convenções de uma escrita literária.

Começo com minha vida pessoal e presto atenção aos meus sentimentos físicos, pensamentos e emoções. Uso o que chamo de “introspecção sistemática sociológica” e “recordação emocional” para tentar compreender uma experiência que eu vivi. Ao explorar uma vida particular, espero compreender um modo de vida (Ellis, 2004, p. xviii).

A auto-etnografia sobrepõe arte e ciência; é parte auto ou self e parte etno ou cultura. Mas é diferente de ambos, maior do que suas partes. Similar à etnografia, a auto-etnografia tanto se refere ao processo quanto ao que é produzido neste processo. (Ellis, 2004, p. 32).

Assim, a auto-etnografia (AE) se refere à escrita sobre a pessoa e suas relações com a cultura. É um gênero autobiográfico de escrita e de pesquisa que expõe múltiplas camadas de consciência. Olha-se para frente e para trás: primeiro olha-se por uma lente angular etnográfica, focalizando fora, os aspectos sociais e culturais de sua experiência pessoal; então, olha-se para dentro, expondo um self vulnerável que é movido por e pode se mover através, refratar e resistir a interpretações culturais. À medida que o zoom se aproxima e se afasta, para fora e para dentro, as distinções entre o pessoal e o cultural se tornam borradas, algumas vezes além de um reconhecimento distinto (Ellis, 2004, p. 38).

Usualmente escritos na primeira pessoa, os textos auto etnográficos aparecem em várias formas: como histórias curtas (contos), poesia, ficção, novelas, fotografia e prosa da ciência social. Mostram ação concreta, diálogo, emoção, corporeidade, espiritualidade, e autoconsciência. Estes aspectos aparecem como histórias relacionais e institucionais afetadas pela história e por estruturas sociais que “elas próprias são dialeticamente reveladas através de ações, sentimentos, pensamentos e linguagem” (Ellis, 2004, p. 38).

Embora não diretamente relacionadas ao presente artigo, fizeram parte do percurso metodológico: Entrevistas com familiares, com historiadores especializados na temática, e com pessoas relacionadas à colonização e também entrevistas realizadas pelo Instituto Cultural Judaico Marc Chagall com ex-colonos da Colônia Philippson; Fontes documentais, primárias e secundárias; Documentos particulares: como certidões de casamento, registros de propriedades, cartas trocadas entre parentes e por eles guardadas, além de fotografias e outras formas de documentação.

Neste caminhar, descobri que eu estava focalizando “uma maneira específica de chegar e se instalar numa realidade social totalmente nova e estranha” (Massimi, Mafhoud, Silva, Avanci, 1997, p. 18): o dos colonos, e não dos viajantes nem dos missionários. O ser-colono atravessa as páginas deste texto como uma trajetória sombra.

 

O DESCOBRIMENTO DE SI PRÓPRIO NA HISTÓRIA: HISTÓRIA E AUTOBIOGRAFIA

 

Neste artigo, partindo-se do pressuposto que são os acontecimentos que geram a história, pergunto: quais foram os acontecimentos no decorrer do trabalho que resultaram no pós doutoramento?

 

Primeiro acontecimento: A fundação: O encontro com o bisavô

 

O bisavô era um inexistente até ser encontrado vivo ao meu lado – nas cartas escritas dando conta dos acontecimentos na Colônia Philippson – descrito como criando problemas para os administradores da Colônia na qual era o responsável religioso e a eles se opondo. Esta vida era dada pelas palavras escritas sobre ele no presente ano de 1904. 1904 era hoje, nas cartas. Não tenho nem memória nem recordação nem dele nem desse passado, e o passado me era revelado como presente.

Portanto, o tempo desta escrita se inicia quando me insiro no tempo do passado, de um princípio de um princípio, e início uma terceira força, diagonal, que Arendt denomina pensamento (2011, p. 38). Arendt (p. 31) fez pensar: que tesouros dos antepassados foram passados? Esses tesouros têm valor? O que aconteceu com a herança? Estarei dando um acabamento em uma história interrompida pela morte dos pais?

Hannah Arendt (2011, p. 28) tornou famosa a frase de René Char: Notre héritage n´est précéde d´aucun testament. Nossa herança não é precedida por nenhum testamento: o que quer dizer isto? Explica ela que esta frase anuncia o fim da tradição, ocasionando, conjuntamente, o fim da autoridade implicada em não se ter uma tradição. Poderíamos acrescentar que o “saber para ser feliz” reduziu-se ao “saber pelo saber” (Massimi, 2011). Neste trabalho, começo perguntando se há um testamento, respondendo afirmativamente: há um testamento porque há herdeiros, e alguns destes herdeiros seria a minha família materna.

“O testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para um futuro. Sem testamento, ou resolvendo a metáfora, sem tradição – que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem” (Arendt, 2011, p. 31).

Então, as perguntas que eu teria de responder seriam: que tesouros são estes? Qual o seu valor? E o que aconteceu com a herança? Mas antes tenho de confirmar que houve a herança, o testamento, e que ela foi recebida: ela existe porque os lábios do Barão a expressaram: com a morte de seu filho Julian, todos os judeus desafortunados do mundo serão meus herdeiros (Frischer, 2002, p. 327). “Après la mort de son fils, il decida de faire des juifs sa famille d´adoption”.

Que tesouro foi este? A terra, a posse da terra, o trabalho na terra, de um lado; a preservação dos judeus e do judaísmo, de outro. Seu valor: o amor a terra. Quem o declara: Abrão (meu tio), neto de Abraham (meu bisavô), o patriarca, e Alegria (minha prima), sua filha. Esta diz: “Tu não entendes o que é o amor a terra...!!! tu não recebeste a tradição porque foste criada em outra família!” (com. pes.).

Portanto, a herança não é minha, e o meu espanto e encantamento foi, ao levantar um véu, espreitar por baixo dele a historicidade da vinda dos colonos ao Brasil, de sua chegada e de seus primeiros momentos e mal-estares. Eu sou uma estrangeira neste assunto da minha família, o que me motiva a construir a sua história, que é a minha, e me enraizar e me dar um sentido que, ao ser arrancada do solo, provocou (Schutz, 2010).

Prosseguindo as pegadas de Hannah Arendt (2011), estou tentando dar o “acabamento” que “todo acontecimento vivido precisa ter nas mentes dos que deverão contar a história e transmitir seu significado” (p. 32), para ter uma história que possa ser contada. Este “acabamento”, no presente caso, é este estudo. Minha herança é a escrita deste trabalho.

Pinto (1998) cita Borges: “No hay otros paraísos que los paraísos perdidos”. Com isto, afirma que só se tem o que se perdeu. Mas eu nunca tive bisavô: ganhei. Será este texto uma elaboração de uma perda após um ganho?

 

O princípio de um princípio

 

A presentificação do passado e do futuro -, aponta para a reunião de memória, patrimônio, história e identidade (nacional). Esta memória que recebo carrega uma identidade e uma história que podem se tornar monumentos, patrimônios “pessoais”?

Por outro lado, trata-se do princípio do princípio – a chegada à Terra Prometida, o Brasil - e, por causa disto, perseguiu todos os momentos da escrita, e persegue ainda, levando a este último texto.

O tempo desta escrita se inicia quando eu me insiro no tempo do passado e abro uma lacuna entre passado e futuro, na forma de um acontecimento: que é o nascimento de mim como autora deste escrito. Este seria o princípio dos princípios, quando Arendt se refere ao pensamento de Agostinho (p. 37).

“Este pequeno espaço intemporal no âmago mesmo do tempo, (...), não pode ser herdado e recebido do passado, mas apenas indicado: cada nova geração (...) deve descobri-lo e, laboriosamente, pavimentá-lo de novo” (Arendt, 2011, p. 40).

A leitura da crítica de Agamben (2000) ao conceito de tempo explicita o que senti ao me confrontar com a leitura de meu bisavô – desconhecido por mim – como pessoa representativa de uma comunidade e que se comportava de modo não agradável aos responsáveis por sua vinda ao Brasil. Em Tempo e História (2000), Agamben critica a visão do tempo como um continuum pontual e homogêneo, que permaneceu ao lado das teorias sociais e históricas, mesmo as revolucionárias como o marxismo, no próprio cristianismo e na modernidade.

Em contraposição a esta noção de tempo, traz o conceito dos estoicos para quem o modelo era “o kairós, a brusca e súbita coincidência em que o homem decide pegar a ocasião, realizando sua vida no instante: o kairós concentra em si próprio os diversos tempos” (Agamben, 2000, p. 126). Esta visão de tempo é uma importante contribuição deste autor para a compreensão dos fenômenos ligados à vida das pessoas, além de se aproximar da definição de poética como instante com/sagrado (Paz, 1982), em que ocorre esta brusca e súbita coincidência, concentrando em si diversos tempos, como o da própria humanidade. Agamben comenta que Heidegger, após o Ser e o Tempo, propõe o conceito de acontecimento (Ereignis) – adveniente para Romano (2010) – pensado não mais como uma determinação espaço-temporal, mas como uma abertura da dimensão originária no qual se funda toda dimensão espaço-temporal (Agamben, 2000, p. 129).

Propõe que a história não é, como quer a ideologia dominante, uma sujeição do homem ao tempo linear contínuo, mas sua libertação: o tempo da história é o Kairós que permite à iniciativa humana se apropriar da ocasião favorável e escolher instantaneamente a liberdade. Opõe, assim, ao tempo cronológico da pseudo-história, o tempo kairológico da história autêntica.

Nesta exposição sobre a relação entre a noção de tempo e a de história, fica implicada a de acontecimento que, para Romano (2010), é radicalmente imprevisível, enquanto sua atualização o torna (retrospectivamente) possível, reconfigurando a totalidade dos nossos possíveis: “ele não acontece no mundo, mas abre um novo mundo para aquele ao qual ele advém” (p. 8).

 

Segundo acontecimento: O (re)conhecimento: Racismo e preconceito associado à origem.

 

Convidada a uma festa religiosa na biblioteca em Paris onde estão as cartas escritas pelos administradores da Colônia Philippson, uma funcionária ri sarcasticamente ao eu ser introduzida como descendente de colonos. Esta risada significava racismo e preconceito. Eu, como brasileira, nunca havia sentido nada semelhante: ser inferiorizada devido à minha origem. Aliás, não tinha como minha origem ser uma ex-colona. Outra funcionária, de origem argentina, país onde ocorreu uma grande colonização realizada pela ICA, sensibilizada, acercou-se e se ofereceu para me ajudar no que eu precisasse.

Qual o acontecimento? Eu-colona (imigrante pobre sustentada pela ICA desenraizada) versus eu-PhD-USP, brasileira, etc. estagiando em Paris e dando início a um projeto de pós-doutoramento tomando como tema a história familiar como resultado do referido processo de colonização, sou alvo da mesma discriminação e do mesmo preconceito com que meus antepassados, há mais de 100 anos, sofreram ao chegar no Brasil. Instaura-se um tempo que não vivi, mas que passa a ser meu também.

Vivendo o tempo do kairós, aconteceu uma brusca e súbita coincidência de todos os tempos na minha pele. Transmutei no meu corpo a citação de Borges -  “No hay outros infiernos que los infiernos perdidos” – vivenciando o “inferno” em que devem ter vivido os meus antepassados dado que, a história de imigrantes, mesmo se vencedores, foi, e é, dura e difícil. Contudo, a força do vetor negativo do passado – do passado rural dos antepassados como colonos - me encontrou enraizada no solo Brasil, e, portanto, capaz de criar uma trajetória própria e não assumir o preconceito a mim dirigido.

 

Terceiro acontecimento: Indignação

 

Ao ler as cartas da direção central aos administradores, na biblioteca israelita em São Paulo, sou presa de um enorme sentimento de indignação. Lanço longe de mim o arquivo em que me debruçava tanta foi a minha raiva.

O motivo desta indignação era o desrespeito no tratamento aos meus antepassados e demais colonos aos olhos desta direção de homens ricos, moradores da Europa, judeus também, mas desconsiderando totalmente os colonos como pessoas.

Qual o acontecimento? Identificação. Nisto, Schultz (2010) ao descrever o sofrimento de ser estrangeiro, pode ser um guia radical. Sinto na pele o desprezo que os antepassados sentiram.

Portanto, até este tempo, estou lentamente descobrindo a história dentro de mim, pelos acontecimentos que me acontecem no decorrer da trajetória de realizar o estudo. Palavras vagas até então – como racismo, preconceito, inferioridade, colonizado, estrangeiro, imigrante, migrante –, tornam-se palavras com sentido para mim: o de indignação.

 

Quarto acontecimento: O impensado do tempo: o (des)conhecimento

 

A partir das entrevistas com tios e primos, vou adentrando numa “subjetividade familiar”, nas malhas de complexas relações intrafamiliares. Este adentramento é um aprofundamento, um caminhar para baixo, para regiões submersas. Qual o acontecimento? Resolvo não saber mais do que me foi dado saber. Não quero pensar o impensado do tempo.

 

Memória involuntária

 

Talvez estes quatro momentos revelem traços do que foi denominado memória involuntária. Ramirez (2011), estudando a obra de Benjamin e de Proust, desenvolve o pressuposto de que a memória involuntária – um passado que se apossa involuntariamente do presente – anula as distâncias temporais e supostamente cognitivas entre o passado e o presente, em contraposição ao que é usualmente concebido nas ciências sociais. Mostra como, para estes autores, “a infância, longe de sucumbir ao passado, surge vivaz e potente no presente” (p. 126), a memória que se apossa do indivíduo parece implodir o continuum das formulações mais metódicas a respeito do passado (p. 123), sendo a própria memória que se tem do passado um porvir. A memória em direção à infância, em Proust e Benjamin, não parte de um lembrar proposital e consciente conduzido pela razão, mas são as sensações que tomam de súbito o indivíduo, na forma de um choque e ruptura, e os acontecimentos da infância são revividos com uma mesma ou superior intensidade na vida adulta (p. 121).

Assim, a escrita deste trabalho pode ter acionado a memória involuntária, refletida nos momentos descritos acima, mas permanente na trajetória sombra que, de sua sombra, conduziu este projeto. “O homem totalmente reduzido, em outras palavras, o sobrevivente (...) não é trágico, mas cômico, porque não tem destino. Por outro lado, vive com a consciência trágica do destino”. (Kertész, 2008, p. 20).

Junto com a experiência trágica da vida, perde-se a capacidade de encantamento. Mas como ela aqui permanece, para além dos campos de extermínio nazistas, termino este trabalho com a mesma citação-prece da tese de doutorado: “Em tuas mãos, entrego o meu destino”.

Paul Ricoeur (1990), em o “eu” como um “outro”, traz os acontecimentos acima descritos sobre o pano de fundo comum, a minha família. Tratava-se de um “duplo” com total autoridade para narrar uma história que era a sua, e também a minha, mas de um ponto de vista que era o seu, e não o meu. Não se coloca a questão da verdade, mas da intersubjetividade vista através de uma inerência histórica refletida em espelhos dirigidos a várias dimensões temporais. Assim, como pesquisadora, vi-me mais do que participante; vi-me como parte e partícipe de uma mesma história contada de várias maneiras.

Esses espelhos refletiram um outro que sou eu e lançaram, sobre o ato de entrevistar e/ou pesquisar, a percepção de que também, como pesquisadora, sou narrada pelo outro. Esta reflexão, que creio estar também presente em Lévinas (2004) por meio do rosto do outro como algo do qual não posso fugir nem negar e que existe ao mesmo tempo que eu e que me torna o eu que sou, trouxe a percepção do caráter político do pesquisador como personagem histórico. O pesquisador, sabendo ou não, querendo ou não, passa fronteiras e, ao fazê-lo, insere-se em um fluxo histórico do qual é parte, e não contexto, como talvez imagine ser. Sua historicidade o torna humano e cúmplice daquilo que para ele, é a sua problemática.

 

REFERÊNCIAS

 

AGAMBEN, Giorgio. Enfance et histoire. Destruction de l´expérience et origine de l´histoire. (Trad. Yves Hersant). Paris: Eds. Payot et Rivages, 2000.

 

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